quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Avaliação Educacional: Segunda Carta: do direito e do dever de mudar o mundo

(Freire, 2000c. p.26-28)


Se alguém, ao ler este texto, me perguntar, com irônico sorriso, se acho que, para mudar o Brasil, basta que nos entreguemos ao cansaço de constantemente afirmar que mudar é possível e que os seres humanos não são puros espectadores, mas atores também da história, direi que não. Mas direi também que mudar implica saber que fazê-lo é possível.

É certo que mulheres e homens podem mudar o mundo para melhor, para fazê-lo menos injusto, mas a partir da realidade concreta a que “chegam” em sua geração. E não fundadas ou fundados em devaneios, falsos sonhos sem raízes, puras ilusões.

O que não é porém possível é sequer pensar em transformar o mundo sem sonho, sem utopia ou sem projeto. As puras ilusões são os sonhos falsos de quem, não importa que pleno ou plena e boas intenções, faz a proposta de quimeras que, por isso mesmo, não podem realizar-se. A transformação do mundo necessita tanto do sonho quanto a indispensável autenticidade deste depende da lealdade de quem sonha às condições históricas, materiais, aos níveis de desenvolvimento tecnológico, científico do contexto do sonhador. Os sonhos são projetos pelos quais se luta. Sua realização não se verifica facilmente, sem obstáculos.

Implica, pelo contrário, avanços, recuos, marchas às vezes demoradas. Implica luta. Na verdade, a transformação do mundo a que o sonho aspira é um ato político e seria uma ingenuidade não reconhecer que os sonhos têm seus contra-sonhos. É que o momento de que uma geração faz parte, porque histórico, revela marcas antigas que envolvem compreensões da realidade, interesses de grupos, de classes, preconceitos, gestação de ideologias que se vêm perpetuando em contradição com aspectos mais modernos. Não há hoje, por isso mesmo, que não tenha "presenças" que, de há muito, perduram no clima cultural que caracteriza a atualidade concreta. Daí a natureza contraditória e processual de toda realidade. Neste sentido é tão atual o ímpeto de rebeldia contra a agressiva injustiça que caracteriza a posse da terra entre nós, de maneira eloqüente encarnado pelo movimento dos trabalhadores sem-terra quanto a reação indecorosa dos latifundistas, muito mais ampara dos, obviamente, por uma legislação a serviço preponderantemente de seus interesses, a qualquer reforma agrária, por mais tímida que seja. A luta pela reforma agrária representa o avanço necessário a que se opõe o atrasa imobilizador do conservadorismo. Mas o que é preciso deixar claro é que o atraso imobilizador não é um estranho à realidade. Não há atualidade que não seja palco de confrontações entre forças que reagem ao avanço e forças que por ele se batem. É neste sentido que acham contraditoriamente presentes em nossa atualidade fortes marcas do nosso passado colonial, escravocrata, obstaculizando avanços da modernidade. São marcas de um passado que, incapaz de perdurar por muito mais tempo, insiste em prolongar sua presença em prejuízo da mudança.

Precisamente porque a reação imobilizante faz parte da atualidade é que ela, de um lado, tem eficácia, de outro, pode ser contestada. A luta ideológica, política, pedagógica e ética a lhe ser dada por quem se posiciona numa opção progressista não escolhe lugar nem hora. Tanto se verifica em casa, nas relações pais, mães, filhos, filhas, quanto na escola, não importa o seu grau, ou nas relações de trabalho. O fundamental,se sou coerentemente progressista, é testemunhar, como pai, como professor, como empregador, como empregado, como jornalista, como soldado, cientista, pesquisador ou artista, como mulher, mãe ou filha, pouco importa, o meu respeito à dignidade do outro ou da outra. Ao seu direito de ser em relação com o seu direito de ter.

Possivelmente, um dos saberes fundamentais mais requeridos para o exercício de um tal testemunho é o que se expressa na certeza de que mudar é difícil, mas é possível. É o que nos faz recusar qualquer posição fatalista que empresta a este ou àquele fator condicionante um poder determinante, diante do qual nada se pode fazer.

Por grande que seja a força condicionante da economia sobre o nosso comportamento individual e social, não posso aceitar a minha total passividade perante ela. Na medida em que aceitamos que a economia ou a tecnologia ou a ciência, pouco importa, exerce sobre nós um poder irrecorrível não temos outro caminho senão renunciar à nossa capacidade de pensar, de conjecturar, de comparar, de escolher, de decidir, de projetar, de sonhar. Reduzida à ação de viabilizar o já determinado a política perde o sentido da luta pela concretização de sonhos diferentes. Esgota-se a eticidade de nossa presença no mundo. É neste sentido que, reconhecendo embora a indiscutível importância da forma como a sociedade organiza sua produção para entender como estamos sendo, não me é possível, pelo menos a mim, desconhecer ou minimizar a capacidade reflexiva, decisória, do ser humano. O fato mesmo de se ter ele tornado apto a reconhecer quão condicionado ou influenciado é pelas estruturas econômicas o fez também capaz de intervir na realidade condicionante. Quer dizer, saber-se condicionado e não fatalistamente submetido a este ou àquele destino abre o caminho à sua intervenção no mundo. O contrário da intervenção é a adequação, a acomodação ou a pura adaptação à realidade que não é assim contestada. É neste sentido que entre nós, mulheres e homens, a adaptação é um momento apenas do processo de intervenção no mundo. É nisso que se funda a diferença primordial entre condicionamento e determinação. Só é possível, inclusive, falar em ética se há, escolha que advém da capacidade de comparar, se há responsabilidade assumida. É por estas mesmas rações que nego a desproblematização do futuro a que sempre faço referência e que implica sua inexorabilidade. A desproblematização do futuro, numa compreensão mecanicista da história, de direita ou de esquerda, leva necessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança.

É que, na inteligência mecanicista, portanto determinista da história o futuro é já sabido. A luta por um futuro já conhecido a priori prescinde de esperança. A desproblematização do futuro, não importa em nome de que, é uma ruptura com a natureza humana, social e historicamente constituindo-se.

O futuro não nos faz. Nós é que nos refazemos na luta para fazê-lo.

Mecanicistas e humanistas reconhecem o poder da economia globalizada hoje. Enquanto, porém, para os primeiros nada há o que fazer em face de sua força intocável, para os segundos não apenas é possível, mas se deve lutar contra a robustez do poder dos poderosos que a globalização intensificou ao mesmo tempo que debilitou a fraqueza dos frágeis.

Se as estruturas econômicas, na verdade, me dominam de maneira tão sensorial, se, moldando meu pensar, me fazem objeto dócil de sua força, como explicar a luta política, mas, sobretudo, como faze-la e em nome de quê? Para mim, em nome da ética, obviamente, não da ética do mercado, mas da ética universal do ser humano, para mim, em nome da necessária transformação da sociedade de que decorra a superação das injustiças desumanizantes. E tudo isso porque, condicionado pelas estruturas econômicas, não sou, porém, por elas determinado. Se não é possível desconhecer, de um lado, que é nas condições materiais da sociedade que se gestam a luta e as transformações políticas, não é possível, de outro, negar a importância fundamental da subjetividade na história. Nem a subjetividade faz, todo poderosamente, a objetividade nem esta perfila, inapelavelmente, a subjetividade. Para mim, não é possível falar de subjetividade a não ser se compreendida em sua dialética relação com a objetividade. Não há subjetividade na hipertrofia que a toma como fazedora da objetividade nem tampouco na minimização que a entende como puro reflexo da objetividade. É neste sentido que só falo em subjetividade entre os seres que, inacabados, se tornaram capazes de saber-se inacabados, entre os seres que se fizeram aptos de ir mais além da determinação, reduzida, assim, a condicionamento e que, assumindo-se como objetos, porque condicionados, puderam arriscar-se como sujeitos, porque não determinados. Não há, por isso mesmo, como falar-se em subjetividade nas compreensões objetivistas mecanicistas nem tampouco nas subjetivistas da história. Só na história como possibilidade e não como determinação se percebe e se vive a subjetividade em sua dialética relação com a objetividade. É percebendo e vivendo a história como possibilidade que experimento plenamente a capacidade de comparar, de ajuizar, de escolher, de decidir, de romper. E é assim que mulheres e homens eticizam o mundo, podendo, por outro lado, tornar-se transgressores da própria ética.

A escolha e a decisão, atos de sujeito, de que não podemos falar numa concepção mecanicista da história, de direita ou de esquerda, e sim na sua inteligência como tempo de possibilidade, necessariamente sublinham a importância da educação. Da educação que, não podendo jamais ser neutra, tanto pode estar a serviço da decisão, da transformação do mundo, da inserção crítica nele, quanto a serviço da imobilização, da permanência possível das estruturas injustas, da acomodação dos seres humanos à realidade tida como intocável. Por isso, falo da educação ou da formação. Nunca do puro treinamento. Por isso, não só falo e defendo mas vivo uma prática educativa radical, estimuladora da curiosidade crítica, à procura sempre da ou das razões de ser dos fatos. E compreendendo facilmente coma uma tal prática não pode ser aceita, pelo contrário, tem de ser recusada, por quem tem, na maior ou menor permanência do status quo, a defesa de seus interesses. Ou por quem, atrelado aos interesses dos poderosos, a eles ou elas serve. Mas, porque, reconhecendo os limites da educação, formal e informal, reconheço também a sua força, assim como porque constato a possibilidade que têm os seres humanos de assumir tarefas históricas, que volto a escrever sobre certos compromissos e deveres que não podemos deixar de contrair se nossa opção é progressista. O dever, por exemplo, de, em nenhuma circunstancia, aceitar ou estimular posturas fatalistas. O dever de recusar, por isso mesmo, afirmações como: “é uma pena que haja tanta gente com fome entre nós, mas a realidade é assim mesmo”. /’O desemprego é uma fatalidade do fim do século.” “Galho que nasce torto, torto se conserva.” O nosso testemunho, pelo contrario, se somos progressistas, se sonhamos com uma sociedade menos agressiva, menos injusta, menos violenta, mais humana, deve ser o de quem, dizendo não a qualquer possibilidade em face dos fatos, defende a capacidade do ser humano de avaliar, de comparar, de escolher, de decidir e, finalmente, de intervir no mundo.

As crianças precisam crescer no exercício desta capacidade de pensar, de indagar-se e de indagar, de duvidar, de experimentar hipóteses de ação, de programar e de não apenas seguir os programas a elas, mais do que propostos, impostos. As crianças precisam de ter assegurado o direito de aprender a decidir, o que se faz decidindo. Se as liberdades não se constituem entregues a si mesmas, mas na assunção ética de necessários limites, a assunção ética desses limites não se faz sem riscos a serem corridos por elas e pela autoridade ou autoridades com que dialeticamente se relacionam.

Recentemente participei de perto da frustração bem "tratada" de uma avó, minha mulher, que passara vários dias cuidando de sua alegria, a de ter consigo, em casa, Marina, a neta bem-amada. Na véspera do dia esperado, a avó foi cientificada por seu filho que sua neta já não viria. Programara com amigas da vizinhança uma reunião para a criação de um clube de diversões e esportes.

Programando, a neta está aprendendo a programar e a avó não se sentiu negada ou mal querida porque a decisão da neta, com que está aprendendo a decidir, não correspondia a seu desejo.

Seria uma lástima se a avó, fazendo "beicinho", expressasse um desconforto indevido em face da decisão legítima de sua neta ou que seu pai, revelando insatisfação, tentasse, autoritariamente, impor à filha que fizesse o que não queria. Isto não significa, por outro lado, que, no aprendizado de sua autonomia, a criança em geral, a neta, no caso, não aprenda também que é preciso, às vezes, sem nenhum desrespeito à sua autonomia, atender à expectativa do outro. Mais ainda, é necessário que a criança aprenda que a sua autonomia só se autentica no acatamento à autonomia dos outros.

A tarefa progressista é assim estimular e possibilitar, nas circunstancias mais diferentes, a capacidade de intervenção no mundo, jamais o seu contrário, o cruzamento de braços em face dos desafios. É claro e imperioso, porém, que o meu testemunho antifatalista e que a minha defesa da intervenção no mundo jamais me tornem um voluntarista inconseqüente, que não leva em consideração a existência e a força dos condicionamentos. Recusar a determinação não significa negar os condicionamentos.

Em última análise, se progressista coerente, devo permanentemente testemunhar aos filhos, aos alunos, às filhas, aos amigos, a quem quer que seja a minha certeza de que os fatos sociais econômicos, históricos ou não se dão desta ou daquela maneira porque assim teriam de dar-se. Mais ainda, que não se acham imunes de nossa ação sobre eles. Não somos apenas objetos de sua "vontade", a eles adaptando-nos mas sujeitos históricos também, lutando por outra vontade diferente: a de mudar o mundo, não importando que esta briga dure um tempo tão prolongado que, às vezes, nela sucumbam gerações.

O Movimento dos Sem-Terra, tão ético e pedagógico quanto cheio de boniteza, não começou agora, nem há dez ou quinze, ou vinte anos. Suas raízes mais remotas se acham na rebeldia dos quilombos e, mais recentemente, na bravura de seus companheiros das Ligas Camponesas que há quarenta anos foram esmagados pelas mesmas forças retrógradas do imobilismo reacionário, colonial e perverso.

O importante porém é reconhecer que os quilombos tanto quanto os camponeses das Ligas e os sem-terra de hoje todos em seu tempo, anteontem, ontem e agora sonharam e sonham o mesmo sonho, acreditaram e acreditam na imperiosa necessidade da luta na feitura da história como "façanha da liberdade". No fundo, jamais se entregariam à falsidade ideológica da frase: "a realidade é assim mesmo, não adianta lutar". Pelo contrário, apostaram na intervenção no mundo para retificá-lo e não apenas para mantê-lo mais ou menos como está.

Se os sem-terra tivessem acreditado na ",morte da história", da utopia, do sonho; no desaparecimento das classes sociais, na ineficácia dos testemunhos de amor à liberdade; se tivessem acreditado que a crítica ao fatalismo neoliberal é a expressão de um "neobobismo" que nada constrói; se tivessem acreditado na despolitização da política, embutida nos discursos que falam de que o que vale hoje é "pouca conversa, menos política e só resultados”, se, acreditando nos discursos oficiais, tivessem desistido das ocupações e voltado não para suas casas, mas para a negação de si mesmos, mais uma vez a reforma agrária seria arquivada.

A eles e elas, sem-terra, a seu inconformismo, à sua determinação de ajudar a democratização deste país devemos mais do que às vezes podemos pensar. E que bom seria para a ampliação e a consolidação de nossa democracia, sobretudo para sua autenticidade, se outras marchas se seguissem à sua. A marcha dos desempregados, dos injustiçados, dos que protestam contra a impunidade, dos que clamam contra a violência, contra a mentira e o desrespeito à coisa pública. A marcha dos sem-teto, dos sem-escola, dos sem-hospital, dos renegados. A marcha esperançosa dos que sabem que mudar é possível.

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