2 RAÍZES HISTÓRICO-RELIGIOSAS DO FENÔMENO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA ANTIGUIDADE PRÉ-CLÁSSICA E CLÁSSICA: O PROCESSO DE INVISIBILIZAÇÃO DA MULHER
Em todos os tempos os seres humanos elaboraram diferentes formas de pensamento referentes à sua própria sociabilidade. As primeiras interpretações a respeito da vida em sociedade e dos diferentes papéis que as pessoas desempenham num determinado contexto social foram fundamentadas no discurso religioso.
Jean Jacques Rousseau, na parte final de sua obra O Contrato Social, intitulada Da Religião Civil, analisou o fenômeno religioso e seu papel no processo de estruturação e legitimação das sociedades humanas em todos os tempos. Sua análise inicia-se com as sociedades antigas e as relações sociais existentes nelas e alcança o contexto social de sua época. Seu discurso baseia-se na premissa de que,
os homens não tiveram, no princípio, outros reis além dos deuses, nem outro governo que não o teocrático. [...] É necessária uma longa alteração de sentimentos e ideias para que se possa resolver a tomar um semelhante como senhor e persuadir-se de que isso constitui-se um bem (ROSSEAU, 1999, p.155).
O discurso relacionado às relações de gênero que enfatiza a superioridade natural do homem na sua relação com a mulher está presente na história da humanidade desde suas origens e historicamente foi legitimado, em primeira instância, pela via religiosa.
A religiosidade é um fenômeno humano que serviu não apenas para dar sentido e plausibilidade para a existência humana, como também possibilitou a elaboração da cultura com a consequente normatização da vida em sociedade e das relações sociais estabelecidas no seu interior.
Dito de outro modo, a religião serviu por muito tempo para explicar e legitimar a ordem social vigente, ou seja, as desigualdades sociais, políticas, econômicas, étnicas, de gênero e culturais existentes numa determinada sociedade.
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Entre as diferentes áreas de consolidação das desigualdades geradas historicamente pelos seres humanos, trataremos nas próximas páginas daquela que diz respeito à questão de gênero, ou seja, da diferença fundamental entre homens e mulheres. Gênero como já apontamos anteriormente, pode ser definido como “(1) [...] um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e (2) [...] uma forma primeira de dar significado às relações de poder" (SCOTT, 1995, p. 86). Os traços de violência contra a mulher serão identificados à partir do processo de invisibilização da mulher na Antiguidade Pré-Clássica e Clássica que será a abordado neste capítulo.
2.1 O LUGAR DA MULHER NA ANTIGUIDADE PRÉ-CLASSICA
Desde os primórdios da história da humanidade, sociedade e religião são esferas que estiveram intimamente relacionadas. Na concepção de antigas civilizações pré-clássicas como o Egito, a Mesopotâmia e a nação de Israel, para mencionar apenas algumas delas, os conceitos de sociedade e dos papéis sociais desempenhados pelos indivíduos num dado contexto social foram elaborados a partir de uma perspectiva e de um discurso religioso que tinham como principal finalidade auxiliar o processo de compreensão, significação e legitimação do ‘mundo’ natural e social que caracterizava cada um destes povos (SICRE, 1990; SANTOS, 2009a, p. 77-90; 2009b, p. 25-77; DONNER, 2010).
Entre as relações intersocietárias estabelecidas e legitimadas religiosamente no seio das comunidades antigas pré-clássicas encontra-se aquela que diz respeito à diferença de papéis entre o homem e a mulher na sociedade. A concepção da diferença natural entre eles estruturou-se a partir de uma cosmovisão patriarcal que representou um sistema social vigente em todas as culturas do Mar Mediterrâneo e que legitimou os diferentes modos de dominação, entre os quais, o de dominação da mulher pelo homem (RICHTER REIMER, 2005, p. 70).
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Os registros históricos acerca dos diferentes períodos de constituição das civilizações antigas parecem apontar para o fato de que entre elas, o status social da mulher era mais elevado na fase inicial de desenvolvimento destes povos do que em épocas posteriores, quando as sociedades já estavam bem consolidadas (CRAWFORD, 2005, p. 80-90).
Apesar da escassez de registros sobre as funções sociais das mulheres na história da humanidade, os dados que existem são suficientes para a reconstrução de um quadro panorâmico desta realidade. A quase ausência de informações sobre a participação das mulheres nos eventos significativos das sociedades antigas se deve ao fato de que no processo de elaboração da história da humanidade, o homem, o macho, foi o principal, e quase exclusivo, autor e protagonista desta história (SANTOS, 2001, p. 7-8).
O estudo acerca da mulher numa sociedade antiga, seja ela PréClássica ou Clássica, é uma tarefa complexa uma vez que, como já afirmamos anteriormente, faltam registros históricos que tratem especificamente deste tema. Desse modo, todo discurso elaborado com o propósito de recontar ou apresentar uma perspectiva do passado da história da humanidade necessariamente utiliza, além da literatura em suas múltiplas vertentes, gêneros e estilos, as artes plásticas e os vestígios arqueológicos em geral (RODRIGUES, 201, p. 81).
A seguir, apresentaremos alguns exemplos destes registros a partir do contexto de três grandes civilizações antigas pré-clássicas, a saber, o Egito, a Mesopotâmia e Israel.
2.1.1 O Status Social da Mulher no Egito
Em se tratando de registros históricos vinculados à história do Egito há um numeroso acervo de textos de diversos tipos e gêneros, que datam desde o terceiro milênio antes de Cristo, e que foram redigidos em diferentes estilos de escrita tais como “hieroglífica, hierática e demótica sobre pedra, madeira, óstraco e papiro” (DONNER, 2010, p. 19). Estes textos contam a história do
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desenvolvimento do Egito nos diferentes períodos e dinastias que se sucederam (PACKER, TENNEY e WHITE JR, 1988, p. 121-133).
A sociedade egípcia possuía uma divisão hierárquica bem definida. No topo dessa divisão encontrava-se o faraó, considerado um verdadeiro deus e proprietário nominal de todas as terras do Egito. Em segundo plano, estava a alta burocracia composta por funcionários graduados como os escribas, sacerdotes e comandantes militares. Na base da divisão apareciam os trabalhadores, em geral representados pelos camponeses, artesãos e uns poucos escravos. A agricultura era a principal atividade econômica da sociedade egípcia. Desse modo, os camponeses desempenhavam um papel de fundamental importância para o equilíbrio social do Egito uma vez que eles eram os responsáveis por produzirem um excedente para o Estado, resultante de percentuais pagos à família real pelo uso que faziam das terras pertencentes ao faraó. Parte dessa riqueza era destinada ao sustento da família real, dos componentes da burocracia e dos militares. A outra parte era destinada a financiar obras de drenagem, irrigação e armazenamento para as épocas de baixa colheita, e auxílio para as famílias camponesas em situações de calamidade pública (PEDRO, LIMA e CARVALHO, 2005, p. 27-28).
Buscar a função social da mulher nos registros históricos do Egito Antigo, nos moldes que compreendemos este termo atualmente é simplesmente impossível. À época, salvo raríssimas exceções, os homens não tinham noção muito clara do que significava ser um cidadão. No Egito “bastava a maat, a ordem reta universal interpretada pelo rei e seus funcionários” (CARREIRA, 2001, p. 12) para dar significado a cada acontecimento da vida das pessoas. Na visão egípcia, a harmonia verificada no mundo cósmico e social apesar de suas diferenças constatáveis era a concretização da maat, o princípio originador e organizador de todas as coisas dado pelo criador. Além de principio que fornece ordem para o mundo, a maat,
[...] era também uma deusa. Quer dizer que o conceito da condição feminina no Egito devia ser bastante elevado, se pensarmos que a divindade responsável pela ordem justa total (cósmica, social, política e econômica) era uma deusa. Maat conduz o morto ao tribunal de Osíris; pela maat se pesa a consciência moral (representada no coração) no juízo do Além. Aí está a mulher não como objeto de pensamento e ação jurídica, mas como sujeito (CARREIRA, 2001, p. 25).
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Como verificaremos a seguir, na Mesopotâmia e em Israel ocorre exatamente o contrário. Entre estes povos havia leis mais elaboradas, um ordenamento jurídico que norteava a vida das pessoas, e em particular, das mulheres em diferentes situações.
Uma análise da concepção de dignidade da condição feminina desenvolvida no Egito mostra sua superioridade e um alto grau de desenvolvimento em relação às mais avançadas e requintadas civilizações da época, o que pode ser constatado através do estudo de testemunhos escritos que tratam da vivência da mulher na corte, na sociedade civil e na literatura egípcia.
Entre os egípcios, como será o caso dos outros povos da antiguidade pré-clássica que analisaremos a seguir, a constituição da família estava alicerçada em bases monogâmicas. Isso não significa dizer que entre eles não ocorresse a prática da bigamia ou poligamia. O que geralmente ocorria era o reconhecimento de uma mulher como sendo a esposa oficial, e em determinados casos a tolerância de outras esposas ou concubinas, principalmente nos casos em que a esposa oficial era estéril. Apesar de no Egito o faraó ser reconhecido como o homem que tinha somente uma grande esposa real, “cinco pessoas receberam, sem dúvida sucessivamente, este título durante o longínquo reinado de Ramsés II; mas seus cento e sessenta e dois filhos provam claramente que ele não se restringia às esposas oficiais” (DE VAUX, 2003, p. 145).
Na corte egípcia, a mulher ocupou importantes papéis como o de rainhamãe e de principal esposa do governante, o Faraó. A rainha-mãe algumas vezes chegou a tomar posse provisoriamente do governo do Egito em casos de viuvez, quando o sucessor ao trono ainda era muito jovem para assumir tamanha responsabilidade. Esta prática era comum na cultura egípcia e possuía, inclusive, um discurso mítico bem elaborado que a legitimava.
Religiosamente havia um precedente para a escolha da rainha como regente do herdeiro e como garantidora de seus direitos: o mito de Osíris, Ísis e Hórus. A deusa Ísis, após o assassinato de seu marido (o deus Osíris) pelo irmão (o deus Seth), que almejava o trono do Egito, conseguiu, através da magia, trazer seu consorte de volta e engravidar dele. Assim, com o nascimento de seu filho, o deus Hórus, Ísis o escondeu até que o mesmo crescesse e pudesse resgatar o
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trono que era seu por direito, vingando o assassinato de seu pai (SOUSA, 2010, p. 51).
O mito, apesar de dar algum status à mulher, acentua a importância do papel masculino na função do governo. A trama gira em torno de deuses machos. Osíris, o regente do Egito, é assassinado por Seth suposto usurpador ao trono. Isis, a rainha mãe, é apresentada como genitora e protetora de Hórus, legítimo descendente do trono egípcio. Em casos raros, a rainha-mãe chegou a ‘usurpar’ o trono, depois da maioridade de seu filho, e continuou no poder até o fim de sua vida.
Os governos antigos das civilizações pré-clássicas raramente permitiam que as mulheres ocupassem em definitivo as posições de liderança na sociedade. As poucas mulheres que alcançaram êxito em reivindicar para si o trono fizeram-no por meio de um entre dois expedientes: ou pelo uso da força e da violência ou por, aos poucos, assumirem os poderes de um monarca de personalidade fraca (PACKER, TENNEY e WHITE JR, 1988, p. 128).
Na história do Egito, em especial no início do período conhecido como Novo Império (c. 1580-1200 a.C.), encontramos o registro de uma mulher que assumiu o governo usando o segundo artifício. Foi o caso da famosa Hatshepsut, esposa principal de Tutmés II e tia-madrasta de Tutmés III. Quando seu esposo faleceu, ela assumiu a regência do Egito em virtude da menoridade de seu sobrinho-enteado que contava possivelmente com dois ou três anos de idade na época (SOUSA, 2010, p. 56).
Não satisfeita, porém, com a condição de rainha-mãe, ela assumiu algumas posturas radicais até finalmente arrogar para si o título de Faraó Hatshepsut. Eis em suma, o longo caminho percorrido por ela:
Preferia apresentar-se com o título mais prestigioso de “esposa do deus”. Adaptou títulos faraônicos (“senhora dos Dois Países”); fez-se representar em cenas de iconografia régia (oferecendo diretamente aos deuses); erigiu dois obeliscos em Karnak, usurpando uma prerrogativa faraônica. O gosto do poder mandou às urtigas a intenção de deixar o governo do Egito ao jovem rei uma vez suficientemente adulto. A regente era uma personalidade forte. No ano 7, abandonou titulatura e insígnias de rainha e assumiu os cinco títulos do protocolo faraônico. Para legitimar este passo ousado, forjou textos em que seu pai a designava sucessora, apresentando-a à corte e aos deuses do Egito. Aplicou a si o mito do nascimento divino, mandando pintar nas paredes do seu magnífico templo funerário cenas de união amorosa entre o deus Amon-Ré e a rainha
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Ahmose, sua mãe. [...] Digno e contido é o texto explicativo. Legitimada pela terra e pelo céu, Hatshepsut rodeou-se de funcionários leais, [...]. Não precisou de afastar Tutmés, de quem se contaram sempre os anos de reinado. Mas o rei aparecia cada vez menos em atos oficiais. E havia o velho expediente jurídico da coregência, inaugurado por Amenemhat I nos alvores do Império Médio, agora com papéis invertidos – não o rei idoso ajudado pelo robusto e jovem príncipe herdeiro, mas o jovem e vigoroso faraó afastado de fato pela tia, madura e madrasta em mais de um sentido (CARREIRA, 2001, p. 17-18).
O feito de Hatshepsut poderia ser considerado como a expressão embrionária de um movimento feminista na Antiguidade Pré-Clássica. Parece ser uma tentativa de resgatar o valor da mulher e mostrar que ela tem as mesmas condições que o homem de assumir funções de governo. A postura revolucionária de Hatshepsut parece indicar o anseio feminino de se conquistar um espaço social legítimo e de dar visibilidade a um gênero que comumente ocupou o papel de coadjuvante no palco da sociedade. Infelizmente, não foi este o caso.
O caminho trilhado pela rainha do Egito seguiu a direção contrária. Ao invés de ressaltar os atributos femininos e mostrar que tais atributos não diferem dos masculinos, Hatshepsut decidiu suprimi-los. Para validar sua regência ela arroga para si títulos e atos religiosos reconhecidamente ligados ao governante, até abandonar em definitivo o status de rainha para assumir abertamente o título masculino de faraó do Egito. Oferecer sacrifícios diretamente aos deuses e construir obeliscos em seu próprio nome, atividades tipicamente masculinas, indicavam suas intenções de não abdicar do trono do Egito. Todavia, o ponto alto de sua ousadia surge com a elaboração de um mito que a identificava como filha de Amom-Ré, expressão usada pelos faraós para designar sua natureza divina. Ao designar-se a si mesma como filha do principal deus egípcio, Hatshepsut “se descrevia como ‘totalmente divina’, e dizia que todos os deuses do Egito prometeram protegê-la” (PACKER, TENNEY e WHITE JR, 1988, p. 124).
A atitude de Hatshepsut diferente de promover libertação e emancipação do sexo feminino serviu para legitimar a condição de inferioridade da mulher na sua relação com o homem. O seu exemplo deixa claro que se uma mulher deseja ocupar uma função tipicamente masculina é necessário descaracterizar
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se e assumir os predicados de um macho. O ponto alto da descaracterização de sua sexualidade encontra-se nas imagens que a representavam. Nelas, Hatshepsut, “achou por bem suprimir oficialmente a indumentária e até a anatomia feminina – escultura e relevo ostentam a “faraóa” vestida à homem, tronco raso e nu, avental cobrindo as vergonhas; até as feições do rosto disfarçam bem a feminilidade” (CARREIRA, 2001, p.16). Esta postura só reforçou a ideologia da superioridade natural do homem em relação à mulher.
Após cerca de duas décadas no exercício do poder, Hatshepsut desaparece de modo inexplicável do cenário histórico. Com sua aparente morte natural, seu enteado Tutmés III finalmente assumiu a regência do Egito e procurou, o quanto foi possível, apagar a memória de sua tia-madrasta dos monumentos e registros egípcios a fim de consolidar seu nome e sua dinastia (DONNER, 2010, p. 38-39).
[...] Tutmés tentou expurgar por completo os registros do reinado dela. As inscrições no templo da rainha foram raspadas. Os obeliscos foram revestidos de argamassa que cobria o nome de Hatshepsut e o registro da construção de tais obeliscos. As estátuas da rainha foram jogadas na pedreira. Mas Tutmés III não teve êxito em apagar a fama de Hatshepsut (PACKER, TENNEY e WHITE JR, 1988, p. 129).
Tal atitude de Tutmés III, além de demonstrar o desejo que ele tinha de estabelecer um nome e uma dinastia própria retrata, também, a desaprovação da cultura egípcia quanto à duplicação de governantes no trono, o que reforça a ideia de que em vida o faraó-rainha realmente desempenhou a função do grande soberano no Egito (CARREIRA, 2001, p. 18).
À parte da Corte, na sociedade civil as mulheres chegaram a ocupar, esporadicamente, algumas funções burocráticas estatais tais como as de juíza, escriba e inspetora, o que indica que elas possivelmente frequentavam a escola. Habitualmente, porém, elas se ocupavam das funções domésticas de moer o grão, peneirar a farinha, preparar alimentos e cerveja. Algumas se especializaram no campo da beleza e chegaram a ocupar a função de cabeleireiras reais (CARREIRA, 2001, p. 18-21).
A história da literatura egípcia está estreitamente vinculada à de um personagem indispensável para a manutenção do Estado e a perpetuação de sua cultura, a saber, a figura do escriba. Além de se ocupar com a instrução, o
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escriba desempenhava também funções administrativas e diplomáticas. Em seus escritos sapienciais, ao aconselharem os homens no que dizia respeito ao trato com as mulheres eles enfatizavam: “duas palavras resumem a atitude a tomar ante a mulher: consideração e respeito” (CARREIRA, 2001, p. 21) o que demonstra que o conceito a respeito do sexo feminino na cultura egípcia, apesar das grandes diferenças sociais, tanto para homens como para mulheres, existentes naquela sociedade era mais elevado do que o de das outras nações. Em suma:
Sociedade diferenciada era princípio tão óbvio e inabalável como as diferenças de grandeza nos astros, a distinção de vários tipos de pedras e plantas, de várias espécies de animais. [...] No reino dos faraós, não se pensou nem falou em “igualdade de direitos”, com a subjacente tensão e luta entre os dois sexos. Concebia-se toda a realidade em dualidades que mutuamente se completavam. O Egito era “Os Dois Países”, o faraó “rei do Alto e Baixo Egito”; só o mundo caótico anterior à criação era aquele “em que ainda não havia duas coisas”. Uma das vivências elementares da polaridade e harmonia de dois dados fundamentais é a relação entre homem e mulher. No antigo Egito, tão longe quanto chegam as fontes textuais e, antes delas, as iconográficas, essa relação está marcada por uma óbvia igualdade de valor [não de direitos] de ambos os sexos (CARREIRA, 2001, p. 24-25).
Dito de outro modo, mesmo uma das mais avançadas civilizações da Antiguidade Pré-Clássica considera como sendo natural a desigualdade de direitos entre homens e mulheres.
2.1.2 O Status Social da Mulher na Mesopotâmia
Deixando de lado o Egito Antigo, centraremos nossa atenção na Mesopotâmia. Região situada entre os rios Tigre e Eufrates, a Mesopotâmia é caracterizada pelo surgimento de povos e culturas diferentes que foram se sucedendo “interrompidas por períodos mais ou menos extensos de obscurantismo e decadência [...] Encontramo-nos diante de raças e línguas diversas, épocas de esplendor e de decadência, diferenças éticas, religiosas e políticas” (SICRE, 1990, p. 32-33).
Da região mesopotâmica existem, a exemplo do Egito, muitos registros históricos que remontam ao terceiro milênio antes de Cristo. Estes registros
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são considerados ricos tesouros da arqueologia porque possibilitaram uma maior compreensão do estilo de vida destes diferentes povos.
Entre os anos de 3200 a 2800 a.C., os primitivos sumérios, povo de provável origem asiática, foram se estabelecendo no sul da região mesopotâmica. Os sumérios foram o primeiro povo da região mesopotâmica a mostrar sinais de civilização. Eles foram responsáveis pela construção de cidades, possibilitando o surgimento da vida urbana, “criação de uma escrita, acentuada divisão social do trabalho, organização de uma forma embrionária de Estado, divisão da sociedade em classes, religião institucionalizada, com sacerdotes profissionais” (PEDRO, LIMA e CARVALHO, 2005, p. 32).
Os sumérios inventaram um sistema de escrita que revolucionou a história da humanidade. Sua relevância encontra-se na quantidade de informações que foram possíveis serem registradas através dele e na viabilidade de preservação destes registros ao longo dos milênios. Eles,
Usavam um estilete de caniço para imprimir pequeninos caracteres cuneiformes sobre tábuas de barro, e depois coziam as tábuas num forno até ficarem duras como tijolos. Enterradas em terreno seco, estas tábuas duraram milhares de anos até nossos dias. Os sumérios foram muito cuidadosos em guardar registros de decisões legais, contratos e transações comerciais. Desse modo, suas tábuas de argila dão-nos um quadro completo e exato de sua vida diária (PACKER, TENNEY e WHITE JR, 1988, p. 16).
Os textos mais antigos encontrados na região mesopotâmica aparecem na escrita cuneiforme “em língua suméria e acádica sobre pedra e tabuinhas de argila; além disso, desde o 1º milênio a.C., também textos em língua e escrita aramaica sobre pedra e óstracos” (DONNER, 2010, p. 20). O famoso Código de Hamurabi e a Lei de Eshnunna figuram entre as mais importantes produções que marcaram estas culturas antigas pré-clássicas.
Na Mesopotâmia a situação da mulher não foi uniforme. Seu status social estava condicionado à época e ao povo ao qual ela pertencia. O papel que lhe era destinado no seio da família, e na sociedade em geral, estava vinculado ao costume e à perspectiva jurídica de cada povo.
A mulher mesopotâmica além de desempenhar o papel de esposa do rei, a quem, tantas vezes, superava em energia e em iniciativa, em algumas ocasiões chegou a assumir a posição de rainha. Outras mulheres, de famílias
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mais abastadas, destacaram-se nos negócios, em atividades comerciais, em contratos de empréstimo de prata e cereais, na prática de venda, troca, aluguel ou doação de propriedades, que geralmente pertenciam a elas (SANTOS, 2001a, p. 45-46).
Além disso, a vida religiosa das mulheres mesopotâmicas era muito ativa. Havia desde “prostitutas sagradas” que ocupavam o templo de Ishtar, a deusa do amor, até mulheres de boa família que, por serem impedidas de gerar filhos, viviam em santuários como o do deus Shamash. As mulheres de boa família, entretanto, não ocupavam funções religiosas nos templos, ao contrário, eram distintas mulheres de negócios que enriqueciam comprando casas e terras que alugavam e cultivavam. Quando elas morriam, a fortuna que possuíam era entregue às suas respectivas famílias de origem (SANTOS, 2001a, p. 46-47).
À parte das mulheres que ocupavam lugar de destaque na sociedade, a situação da mulher mesopotâmica comum era determinada com base em preceitos legais vigentes e pela relação matrimonial. A situação jurídica e social da mulher, sobretudo das mulheres da Suméria e da Antiga Babilônia, como bem descreve o famoso Código de Hamurabi, era muito mais livre do que a das mulheres da Assíria.
A mulher babilônica podia fechar contratos e apresentar-se diante dos tribunais, como parte ou como testemunha. Estava autorizada a ocupar certos cargos da administração tais como o de escriba ou membro do colégio jurídico. Encontrava-se legalmente protegida contra a violência ou contra a difamação, mantendo-se, contudo, o caráter patriarcal do matrimônio mesopotâmico (SANTOS, 2001a, p. 47-48).
Na Mesopotâmia, o matrimônio foi estabelecido com base no princípio da monogamia e do patriarcado, sendo toleradas em situações específicas, relações com concubinas e escravas. Sua finalidade primária era a manutenção da casa, do esposo e a geração de muitos filhos, que eram vistos como mão-de-obra fundamental para o sustento da família. O contrato de casamento celebrado entre as famílias dos noivos evidencia o papel atribuído à mulher nestas sociedades. Com a sua morte, o dote, o preço que se pagava à
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época pela noiva, geralmente era entregue aos seus filhos (JOSÉ, s/d, p. 1418).
Segundo o sistema jurídico que servia de base legal e que ordenava e legislava a vida social do povo assírio, a conhecida Lei de Eshnunna, o matrimônio tinha efeitos legais,
[...]desde que se realizasse um contrato escrito com o pai da noiva. Nestas leis fazia-se constar expressamente que o contrato escrito não podia ser substituído, nem pela permanência ao longo de um ano da mulher junto do homem, o que anteriormente era suficiente para que o matrimônio adquirisse caráter legal (SANTOS, 2001a, p. 49).
A necessidade de se estabelecer um contrato formal por escrito para legitimar a relação matrimonial é encontrada, também, no Código de Hamurabi, o ordenamento jurídico que regia a vida das pessoas na Babilônia. Este Código impunha a mesma condição à mulher que, ao casar-se “abandonava a casa paterna e deixava de encontrar-se sob a autoridade do pai para passar a estar sob a do marido” (SANTOS, 2001a, p. 50). A família, constituída legitimamente a partir do casamento era, portanto, o alicerce basilar da sociedade babilônica, e esta sociedade, da mesma forma que as outras do Antigo Oriente, era estruturada sob um sistema patriarcal de governo (GUIMARÃES, 2006, p. 11).
A dissolução do matrimônio de acordo com as leis da época poderia ocorrer com a morte de um dos cônjuges ou através do divórcio. Havia diferentes preceitos que regulamentavam um novo casamento em casos de viuvez. Na prática, o divórcio só poderia ser solicitado pelo homem. Em alguns casos o divórcio ocorria sem a necessidade de qualquer justificativa por parte deste (SANTOS, 2001a, p. 50-51).
Algumas leis prescritas no Código de Hamurabi amparavam as mulheres em caso de divórcio. Entre as causas que poderiam romper um matrimônio pela via do divórcio contavam: a esterilidade da mulher,
138. Se um homem quer se separar de sua primeira esposa que não lhe deu filhos, deve dar a ela prata correspondente ao preço que o pai do noivo pagou por ela e restituirá o dote que ela trouxe da casa de seu pai; só então poderá deixá-lo. [...] (GUIMARÃES, 2006, p. 36).
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A má administração do dinheiro da casa,
141. Se a esposa de um homem, que vive em sua casa, decidir partir e criou para si um pecúlio, dilapidou sua casa, negligenciou seu marido, comprovarão isto contra ela. Se o marido disser que quer repudiá-la, poderá fazê-lo e não lhe dará nada, nem para sua viagem, nem como indenização de separação. Se ele declarar que não quer repudiá-la, ele poderá tomar outra mulher e a primeira permanecerá como criada na casa de seu marido (GUIMARÃES, 2006, p. 36).
A infidelidade conjugal,
142. Se uma mulher tomou aversão a seu marido e disser: “Não terás relações comigo”, seu caso será examinado em seu distrito. Caso ela seja irrepreensível e não cometeu erro de conduta no seu comportamento, e seu marido for um saidor e a tiver humilhado muito, ela será eximida de culpa, tomará seu dote e irá para casa de seu pai. 143. Se não for inocente, mas é uma saidora e arruína sua casa, desonra seu marido, esta mulher deverá ser lançada na água (GUIMARÃES, 2006, p. 37).
Ou, uma enfermidade grave.
148. Se um homem tomar uma esposa, e ela adoecer de moléstia contagiosa, e ele decidiu tomar uma segunda esposa, poderá fazê-lo, mas não poderá repudiar sua primeira esposa, que foi atacada pela doença contagiosa, devendo mantê-la e sustentá-la na casa que foi construída para ela enquanto viver (GUIMARÃES, 2006, p. 36-38).
Pode-se concluir, portanto, a partir dos dados até aqui apresentados que, tal como em outras sociedades, os papéis das mulheres na Mesopotâmia variavam, em nível individual e comunitário, de acordo com suas respectivas condições socioeconômicas. Contudo, permanece o fato de que elas estão inseridas numa sociedade patriarcal, e nesta, a figura do homem é a autoridade final em todas as questões. Até aqui, é possível constatar que a cosmovisão patriarcal e tendência à prática da invisibilização da mulher encontra-se enraizadas nas civilizações mais antigas de que se têm registros.
2.1.3 O Status Social da Mulher em Israel
O início da história de Israel está vinculado à época dos patriarcas. Os ancestrais dos israelitas, e os próprios israelitas no princípio de sua história, levavam uma vida nômade ou seminômade (DE VAUX, 2003, p. 21). A
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estrutura social mais antiga nesse período era a família que abrangia pai, mãe ou mães, concubinas, filhos e escravos. Apesar das discussões levantadas por vários etnólogos sobre o tipo de constituição da família nos primórdios da história de Israel, “a família israelita é claramente patriarcal desde nossos documentos mais antigos” (DE VAUX, 2003, p. 42).
O termo corrente utilizado para designar a família nesse período era ‘casa paterna’, e as genealogias, salvo raras exceções, sempre são dadas a partir da linhagem do pai.
No tipo normal de casamento israelita, o marido é o senhor, o ba‘al de sua esposa. O pai tem sobre os filhos, inclusive os casados, se vivem com ele, e sobre suas mulheres, uma autoridade total, que antigamente chegava até o direito de vida ou morte: Judá condena sua nora Tamar, acusada de imoralidade, Gn 38.24. A família compõe-se daqueles elementos unidos ao mesmo tempo pela comunidade de sangue e pela comunidade de habitação. [...] À família pertencem também os servos, os residentes estrangeiros ou gerîm, os apátridas, as viúvas e órfãos, que vivem sobre a proteção do chefe de família (DE VAUX, 2003, p.42).
À medida que esta estrutura social primária, a casa paterna, se torna mais complexa surgem outras esferas de relacionamento onde novas pessoas passam a ser incluídas. O agrupamento de muitas famílias constituirá o clã. O ajuntamento de vários clãs dará origem às tribos. A união das diversas tribos resultará, na história tardia de Israel, no surgimento e consolidação do Estado Monárquico (SANTOS, 2009b, p. 34-52).
Um período marcante na história de Israel é a época dos Juízes, marcada pelo registro da conquista e apropriação da terra de Canaã pelos israelitas. Os narradores bíblicos dão como certo que, ao sair do Egito, o povo de Israel já estava organizado em núcleos mais amplos que tradicionalmente são denominados clãs e tribos. Da condição de nômades ou seminômades o povo, agora, dividido em tribos, precisou se adequar a um novo estilo de vida, resultante da conquista de Canaã, e se adaptar “à vida sedentária, à agricultura, à submissão às estações, aos trabalhos do campo, à criação de novos animais” (SICRE, 1990, p. 59). O Estado Monárquico, que sucede historicamente o período dos Juízes, consolidou em definitivo este novo estilo de vida.
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A Tanakh (Lei, Profetas e Escritos), também denominada Antigo ou Primeiro Testamento, é a literatura sagrada do povo de Israel. Nela estão contidos registros históricos da gênese e desenvolvimento de Israel na condição de nação. No que diz respeito à relação entre o homem e a mulher e à condição social feminina na cosmovisão israelita, deparamo-nos, desde as primeiras páginas da Bíblia hebraica, com dois modelos simbólicos de construção do feminino, a partir de diferentes relatos da criação dos seres humanos.
O primeiro destes relatos apresenta o ato de criação dos seres humanos no seguinte teor: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou. Homem e mulher ele os criou” (Gn 1,27 – BJ). Neste versículo das Escrituras encontramos uma narração mais próxima de um ideal antropológico teórico e unívoco a respeito da condição de homem e mulher. Aqui, ambos,
[...] são criados simultânea e equiparadamente como um unívoco ser humano, de um só nome, ’adam. A situação antropológica pressuposta é de homonímia, univocidade conceptual e paridade antropológica. No estatuto antropológico e na dimensão simbólica eles são uma só realidade, “imagem e semelhança de Deus”. A isto nada obsta que apareçam de imediato especificados como macho e fêmea. [...] A imagem de unidade que aqui se exibe faz-nos pensar na fórmula solidária e igualitária de uma personalidade corporativa. No entanto, a segunda parte que respeita à individualidade concreta de cada um, o texto é menos orgânico. “Homem e mulher” é no texto original hebraico apenas “macho e fêmea” (RAMOS, 2001, p. 30).
Na direção oposta ao ideal de ser humano esboçado no primeiro relato da criação, encontramos a segunda narrativa que pode ser dividida em dois quadros, e que reflete com maior clareza e de modo mais concreto e real o status da mulher na sociedade israelita. O livro de Gênesis apresenta o primeiro quadro nas seguintes palavras:
Iahweh Deus disse: “não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda”. Iahweh Deus modelou então, do solo, todas as feras selvagens de todas as aves dos céus e as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. O homem deu nome a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens, mas, para o homem, não encontrou a auxiliar que lhe correspondesse. Então Iahweh Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem. Então o homem exclamou: “Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne de minha carne! Ela será chamada ‘mulher’ porque foi tirada do homem!” (Gn 2,18-23 – BJ).
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Num mundo perfeito e paradisíaco, a mulher é criada de uma parte do próprio homem para ser a companheira ideal, aquela que possa assisti-lo, estar diante dele. A criação da mulher a partir da costela do homem significa que a mulher foi criada da mesma essência do homem. A condição de igualdade entre eles é enfatizada no final do relato a partir do nome que ela recebe. O nome na cultura hebraica era usado basicamente para designar “o caráter ou a função da pessoa” (GRUDEM, 1999, p. 380). Desse modo, o termo hebraico ִא ָשּׁ ה (’ishshah), substantivo feminino traduzido por mulher, que
nomeia, em primeira instância, a nova criação de Deus, e que deriva da expressão hebraica ִ אישׁ (’ish) homem, enfatiza numa primeira abordagem a
relação de completude que existe entre eles. A exclamação que subjaz o nome que ela recebe confirma essa premissa. A mulher, enfatiza categoricamente o homem, “é osso dos meus ossos e carne da minha carne!”
O segundo quadro, porém, que ocupa praticamente todo o terceiro capítulo do Gênesis descreve as fragilidades e degradações que passaram a caracterizar a condição feminina a partir do relato da tentação e da queda. O referido texto apresenta o seguinte registro:
A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “Então Deus disse: Vós podeis comer de todas as árvores do jardim?” A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte”. A serpente disse então à mulher: “Não, não morrereis!” Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal. A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também ao seu marido, que com ela estava, e ele comeu. Então abriram-se os olhos dos dois [...] Iahweh Deus [...] retomou [...] comeste, então, da árvore que te proibi de comer! O homem respondeu: “A mulher que puseste junto de mim me deu da árvore, e eu comi!” Iahweh Deus disse à mulher: “Que fizeste?” E a mulher respondeu: “A serpente me seduziu e eu comi”. [...] À mulher ele [Iahweh Deus] disse: “Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará” [...] O homem chamou sua mulher “Eva”, por ser a mãe de todos os viventes (Gn 3,1-20 – BJ).
A partir do texto acima apresentado, é possível inferir que a iniciativa de desobediência à ordem direta de Deus veio da mulher e não do homem. Foi Eva quem buscou inicialmente a sabedoria. Foi ela quem desafiou abertamente
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a Deus. Todavia, Deus responsabilizou o homem, e não a mulher, pelo caos que haveria de assolar o mundo:
Ao homem, ele disse: “Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te proibira comer, maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua vida. Ele produzirá para ti espinhos e cardos, e comerás a erva dos campos. Com o suor de teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3, 17-19 – BJ).
A condição secundária que a mulher passa a ocupar a partir do relato da queda por diante é expressa na descrição do tipo de relação que doravante foi estabelecida entre ela e o homem. Por ter sido considerada a porta de entrada do pecado e da morte para a humanidade, a mulher passa a ser descrita como alguém que se rebelará contra a ordem natural estabelecida por Deus no ato da criação. No projeto original ela deveria ser a auxiliadora do homem.
A expressão sentenciosa que recai sobre ela, “teu desejo te impelirá ao teu marido [...]” passou a ser reconhecida como sinal evidente de que a mulher teria doravante uma inclinação natural para rebelar-se contra a autoridade do homem. Segundo Grudem, um estudo bem fundamentado sobre o termo ‘desejo’, que aparece neste versículo, apontou para a seguinte conclusão, que ele considerou convincente: “a palavra traduzida por “desejo” (teshûqah) significa: “desejo de conquistar” e indica que Eva teria o desejo ilegítimo de usurpar a autoridade do marido” (GRUDEM, 1999, p. 381).
O restante da sentença imposta à mulher, “[...] e, ele te dominará” mostrou, em contrapartida, que o homem também fugiria do propósito divino original de manter uma relação participativa e harmoniosa com sua companheira e assumiria de agora por diante uma posição de abuso de autoridade na sua relação com ela. A expressão ‘dominará’, assevera Grudem (1999, p. 381):
[...] (heb. Mashal) é um termo forte geralmente associado a governos monárquicos, e não em geral à autoridade dentro de uma família. A palavra certamente não implica nenhum governo “participativo”, com influência dos comandados, mas antes tem matizes de autoridade ditatorial ou absoluta e aviltante, e não de um governo ponderado e sensato. Sugere dureza, e não gentileza. O sentido aqui é que Adão abusará da sua autoridade, dominando a sua esposa com dureza algo que mais uma vez introduz dor e conflito num relacionamento antes harmonioso.
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Além disto, a mulher recebe do homem um novo nome que descreve a posição que ela passa a ocupar no cenário da história da humanidade desde então. De auxiliadora, ela doravante passa a ser identificada pela expressão hebraica ַחָוּה (hawwah), Eva, nome este que traz um novo significado para sua
existência, o de “mãe dos viventes”, tarefa que se mostrará laboriosa e espinhosa para todas as mulheres.
A ideia de que a mulher ocupa no cenário da criação a posição de companheira, de parceira do homem, antes de ser a mãe de seus filhos parece representar alguma originalidade antropológica. Todavia, no processo de construção da imagem feminina no decorrer da história de Israel, a grande ênfase recairá sobre o aspecto negativo do relato de criação, a tentação e a queda da humanidade através da mulher, tema este que será matizado na mentalidade dos israelitas até aos extremos. Aqui se encontra a origem de algumas das ideias mais negativas da literatura bíblica canônica e extracanônica sobre a condição da mulher.
Nas primeiras sociedades hebraicas caracterizadas, como afirmamos anteriormente, pelo estilo nômade de vida, a visão patriarcal predominou na vida inter e intrafamiliar. À medida que estas sociedades tornaram-se mais complexas e sedentárias, o que ocorreu de modo progressivo na época dos juízes até sua plena institucionalização no período dos reis, o patriarcado extrapolou o âmbito familiar e passou a predominar na vida pública. Surgiram, na esfera social, leis explícitas que subordinaram e inferiorizaram a mulher. A maternidade tornou-se a função essencial dela. A esterilidade sua desgraça pessoal e social (RAMOS, 2001, p. 32-33).
O ideal de casamento na sociedade israelita, baseado no relato da criação do primeiro casal humano conforme Gênesis 2, 21-24, era a relação monogâmica. Os primeiros patriarcas oriundos da linhagem de Sete (Gn 5), entre os quais se inclui Noé, foram monógamos. Na prática, porém, o que se observa em primeira instância é uma monogamia relativa como ocorria entre os mesopotâmicos e babilônios. Há uma esposa titular, sendo permitido, em casos específicos, tomar uma nova esposa ou uma concubina (DE VAUX, 2003, p. 46).
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Na história tardia de Israel constata-se uma frouxidão em relação à observância da monogamia como um princípio. Na época dos juízes e dos reis de Israel a poligamia passou a ser reconhecida como um ato legal, o que pode ser constatado a partir do registro das numerosas esposas que compunham os haréns dos reis de Israel. O caso de Salomão é singular. De acordo com o registro de 1Reis 11,3, ele possuía no seu harém “setecentas esposas e trezentas concubinas”. É possível que esses números fabulosos e exagerados tenham como propósito enfatizar o esplendor de seu reinado, uma vez que, “em uma sociedade que admitia a poligamia, ter um harém numeroso era sinal de riqueza e poder, mas era também um luxo custoso que poucos podiam permitir-se. Isto tornou-se um privilégio real” (DE VAUX, 2003, p. 144). Apesar da prática da poligamia ter se tornado comum e aceitável entre líderes e poderosos em Israel, os registros bíblicos parecem indicar “que a monogamia era o estado mais frequente na família israelita” (DE VAUX, 2003, p. 48).
A mulher, sua sexualidade e sua capacidade reprodutiva, passou, paulatinamente, a ser considerada propriedade particular que pertencia “primeiramente, a seu pai e depois a seu marido” (PRESSLER, 2000, p. 112). Nos mandamentos que constituem o famoso Decálogo (Ex 20) a mulher é enumerada entre as posses de um homem: “Não cobiçarás a casa de teu próximo. Não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo” (Ex 20,17 - BJ). O termo ‘tomar esposa’, usado comumente na língua hebraica para referir-se ao casamento, “se expressa pelo verbo da mesma raiz que ba‘al e significa, portanto, ‘tornar-se dono’ [da mulher]” (DE VAUX, 2003, p. 48). A vida de uma mulher israelita, portanto, restringia-se basicamente às atividades do lar e à consequente dependência do homem, fosse ele o pai ou o marido.
Por trás da intenção de se corporificar a sabedoria por meio da imagem feminina, conforme registro encontrado no livro de Provérbios 31,10-31, existe a descrição de um estereótipo da mulher perfeita, a partir do exemplo de uma dona de casa ideal. Ela é submissa e inteiramente fiel ao seu marido; seu maior objetivo é fazê-lo feliz durante toda a sua vida; ela cria bem seus filhos e administra com eficiência os bens domiciliares; ela distribui atividades entre os
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criados e as criadas e fiscaliza o trabalho deles; dedica-se à tecelagem e fabrica roupas para sua família, seus criados, e um excedente para ser negociado; ajuda os pobres e indigentes; não cultiva o ócio (não é preguiçosa!); ela é sábia em suas palavras e teme a Iahweh. As palavras iniciais desta perícope, “Quem encontrará a mulher de valor? Vale muito mais do que pérolas” (Pr 31,10 – BJ), todavia, parecem indicar certo ceticismo do narrador em relação à existência desta mulher.
No campo social e político a regra geral era a ausência ou o afastamento da mulher da vida pública. Isso não significa dizer que nenhuma figura feminina jamais exerceu função pública em Israel. Como ocorreu entre outros povos, há também na história de Israel, desde suas origens, inúmeros relatos da presença ativa de mulheres na Bíblia. Grande parte delas eram pessoas comuns que viveram praticamente no anonimato. Algumas mulheres tornaramse conhecidas e se destacaram pelas virtudes pessoais que possuíam. Poucas foram consideradas ‘heroínas’ ou ‘tiranas’. Contudo, aquelas que receberam essas designações se destacaram na esfera social, política e econômica e contribuíram, significativamente, para a formação de povo de Israel (ARNS, GORGULHO e ANDERSON, 2004, p. 11-116)16.
Como dissemos anteriormente, a ocupação pelas mulheres de funções públicas entre os povos da antiguidade pré-clássica nunca ocorreu de forma natural. Sempre que o fenômeno aconteceu esteve ligado ao uso, pela mulher, da força e da violência para usurpar o poder, ou, à debilidade de caráter de um líder ou regente, o que fez com que a mulher paulatinamente fosse ocupando o lugar do referido líder. Dentre os vários exemplos da presença feminina no espaço público que aparecem no Antigo Testamento faremos menção de duas mulheres. A primeira, Débora, assumiu uma importante função social em Israel na época dos juízes devido a fraqueza de caráter de um líder local chamado Barac. A outra, Atália, que viveu na época da monarquia em Israel, forçou uma passagem no caminho de ascensão ao trono fazendo uso do expediente da violência para tornar-se rainha.
16 Nesta obra, os autores listam todas as narrativas bíblicas em que figuras femininas são mencionadas no Antigo Testamento.
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Débora destacou-se num período de profunda crise política, econômica e social em Israel, época em que a nação passava por uma transição do estilo nômade de vida para o estilo sedentário, caracterizado pela apropriação da terra de Canaã. As narrativas que registram a participação desta mulher nas esferas política e bélica encontram-se registradas no livro de Juízes, capítulos 4 e 5. O relato descreve um período de vinte anos em que a nação de Israel foi subjugada, duramente oprimida e esteve debaixo do domínio de Jabin, rei de Canaã (Jz 4,1-3 – BJ). É neste cenário de opressão que o autor de Juízes insere a figura de Débora.
Nesse tempo, Débora uma profetisa, mulher de Lapidot, julgava em Israel. Ela tinha a sua sede à sombra da palmeira de Débora, entre Ramá e Betel, na montanha de Efraim e os israelitas vinham a ela para obter justiça. Ela mandou chamar Barac, filho de Abinoem de Cedes em Neftali, e lhe disse: “Iahweh, Deus de Israel não te ordenou: ‘Vai, reúne o monte Tabor e toma contigo dez mil homens dentre os filhos de Neftali e os filhos de Zabulon? Não atrairei a ti, na torrente do Quison, a Sísara, chefe do exército de Jabin, com os seus carros e as suas tropas e não o entregarei nas tuas mãos’?” Barac respondeu-lhe: “Se tu vieres comigo, eu irei, mas se não vieres comigo, não irei.” Débora lhe disse: “Irei, pois, contigo, porém, no caminho que seguires, a honra da vitória não será tua, porque é nas mãos de uma mulher que Iahweh entregará Sísara.” Então Débora se levantou e, com Barac, foi para Cedes. Barac convocou Zabulon e Neftali em Cades. Dez mil homens subiram, e Débora subiu com ele (Jz 4,4-10 – BJ).
Débora é apresentada como uma pessoa pública a quem recorriam os israelitas em busca de soluções para as suas demandas pessoais e comunitárias. O status de profetisa e juíza que ela ocupa em Israel não foi obtido por imposição ou sucessão familiar, senão, por carisma pessoal. Ela deve ter sido uma pessoa extraordinária, para que em seu tempo e rompendo com todos os impedimentos de uma cultura marcadamente patriarcal, Barac, um respeitado líder da tribo de Neftalí, fosse suplicar-lhe que o acompanhasse em batalha.
Os versículos seguintes (Jz 4,11-24 – BJ) descrevem a batalha entre os israelitas e os canaanitas com a consequente vitória de Israel sobre os exércitos do rei Jabin. O capítulo 5 registra o famoso cântico de Débora e Barac, um cântico de vitória onde Iahweh, o Deus de Israel, é celebrado por ter providenciado livramento das mãos do opressor, paz e descanso ao seu povo: “Assim perecem todos os teus adversários, Iahweh! Àqueles que te amam
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sejam como o sol quando se levanta na sua força! E a terra descansou quarenta anos” (Jz 5,31 – BJ).
Muito possivelmente numa época em que as condições nem sempre eram favoráveis às mulheres, um grupo – estaríamos possivelmente nos referindo a um grupo de mulheres – se ocupou de conservar e cantar as proezas da nossa protagonista. Ao que parece era importante e significativo para esse grupo conservar a memória de uma mulher “guerreira” no início do povo de Israel. Ao redor de Débora inicia-se, assim, uma memória feminina. Uma memória que canta e celebra as façanhas de mulheres. Por que não dizer que Débora quebra todas as regras implícitas do modo masculino de se ver e fazer política na Bíblia? (ROSSI, 2006, p. 285)
Apesar da posição de destaque que Débora ocupa na narrativa da libertação do povo de Israel do domínio do rei de Canaã, o narrador não esconde sua visão tipicamente patriarcal. Mesmo sendo inicialmente apresentada como profetisa, ela é identificada socialmente pelo nome de seu marido. Ela é Débora a “mulher de Lapidot”, personagem invisível na narrativa que, contudo, é mencionado como uma espécie elemento legitimador das ações de Débora. Ela não é uma revolucionária, nem uma mulher que questiona o status social das mulheres de seu tempo. Débora é casada. Ela tem um homem a quem se submete e que autoriza e legitima todos os seus atos.
Outro detalhe importante deve ser ressaltado à luz da presente narrativa. Ainda que Débora tenha sido reconhecida como profetisa e juíza pelos israelitas, o que certamente demonstra a grandeza de sua fé e o seu compromisso com a aplicação da justiça entre o povo, a tarefa de proporcionar a libertação nacional a Israel foi dada a Barac, um homem que possuía uma fé, no mínimo, vacilante.
A celebração da vitória que foi vaticinada por Débora, e que só se tornou realidade por causa de uma atitude heroica de sua parte, a de acompanhar Barac no campo de batalha, foi registrada pelo narrador como sendo o cântico que “Débora e Barac, filho de Abinoem, entoaram [...]” (Jz 5,1 – BJ), o que deixa clara sua preocupação em ocultar, o máximo possível, a figura feminina no relato bíblico de libertação.
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O outro exemplo de participação de uma mulher na vida política do reino do Sul em Israel que analisaremos a seguir encontra-se registrado no Segundo livro dos Reis. O texto tem o seguinte teor:
Quando a mãe de Ocozias, Atalia, soube que seu filho estava morto, resolveu exterminar toda a descendência real. Mas Josaba, filha do rei Jorão e irmã de Ocozias, raptou furtivamente Joás, o filho de Ocozias, dentre os filhos do rei que estavam sendo massacrados e o colocou, com sua ama, no quarto dos leitos; assim ela o escondeu de Atalia e ele não foi morto. Ficou seis anos com ela, escondido no Templo de Iahweh, enquanto Atalia reinava sobre a terra (2Rs 11,13).
A figura central desta narrativa se chama Atalia. Além de ter sido a única mulher a assumir o governo no Reino de Judá, ela apossou-se do trono real mediante o assassínio da família real, dos descendentes do rei que seriam candidatos ao trono. Seu governo durou apenas seis anos. O narrador não registra detalhes de sua gestão enquanto rainha governante de Judá. Esse parece ser um artifício para minimizar sua administração e ocultar sua função social. Contudo, a gestão de Atalia é avaliada de modo negativo. O pessimismo em relação ao seu governo pode ter sido ocasionado, “pelo fato de ela não pertencer à casa de Davi, ou simplesmente porque era mulher” (ARNS, GORGULHO e ANDERSON, 2004, p. 66).
No texto que narra seu golpe político, além da presença da malévola Atalia, encontramos outra mulher chamada Josaba, que na verdade era meia irmã, e não irmã de Ocozias como aparece no texto, e esposa do sacerdote Joiada (2Cr 22,11). Ela desempenha um importante papel na narrativa bíblica. Josaba ocupa simbolicamente a função de uma legítima rainha-mãe que na ausência de seu marido deve cuidar para que sua prole, um descendente do sexo masculino assuma o trono. Foi graças a ela que um filho do rei Ocozias, Joás, permaneceu vivo. Todavia, seu ato heróico, por mais importante que seja, só confirma a posição secundária da mulher na sociedade. Ela prepara o caminho para que o homem seja projetado na sociedade.
Depois de Josaba escondê-lo por seis anos, uma revolta que uniu a classe sacerdotal, a guarda real e o movimento popular (2Rs 11,4-20) depôs a rainha condenando-a à pena de morte e entronizou Joás no trono real. Ele contava com apenas sete anos de idade quando se tornou rei (2Rs 12,1).O
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exercício real do governo ficou sob a responsabilidade do sacerdote Joiada, seu tutor, até que ele tivesse idade suficiente para reinar.
O registro da preservação milagrosa da vida de Joás e de sua ocupação do trono aos sete anos de idade reforça a ideia de que funções de ordem política devem necessariamente ser ocupadas por um homem, mesmo que ele não tenha condições ideais para isso. Nesse caso, um tutor, que também deve ser homem poderá desempenhar provisoriamente suas funções.
Na prática cúltica da sociedade israelita tardia a figura feminina praticamente desapareceu, e quando foi mencionada, geralmente esteve vinculada aos cultos pagãos e às práticas relacionadas ao ocultismo e à feitiçaria.
[...] o lugar da mulher é tanto menos significativo quanto mais oficial esse culto se apresentava e quanto mais monoteísta ele se ia tornando. Durante a época da monarquia a mulher só aparece no culto que é dirigido a deuses estranhos. E esta prática é expressão das heterodoxias ou transgressões mais criticadas pelos profetas na prática religiosa dos Hebreus. De igual modo, as práticas religiosas marginais, como, por exemplo, a adivinhação, são frequentemente associadas às mulheres (RAMOS, 2001, p. 35).
No Primeiro livro de Samuel, literatura canônica do Antigo Testamento, capítulo 28 versículos 3 a 25, temos um exemplo típico disso, o famoso relato do encontro de Saul, o primeiro rei de Israel, com uma feiticeira. Seu reinado experimentava uma profunda crise. Iahweh Deus o havia rejeitado e transferido o seu trono para a dinastia de Davi. Uma grande batalha estava prestes a ser travada contra os filisteus e a derrota era quase certa. Diante desse quadro, encontramos o seguinte relato:
Quando Saul viu o exército dos filisteus acampado, encheu-se de medo e o seu coração se perturbou. Saul consultou a Iahweh, mas Iahweh não lhe respondeu, nem por sonho, nem pela sorte nem pelos profetas. Saul disse então aos seus servos: “Buscai-me uma mulher que pratique a adivinhação para que eu lhe fale e a consulte”. E os servos lhe responderam: “Há mulher que pratica a adivinhação em Endor” (1Sm 28,6-7).
Como se vê, no relato acima, a situação de crise obriga Saul a buscar ajuda no ocultismo, prática que ele perseguiu com veemência a ponto de quase erradicá-la do meio da nação de Israel nos primeiros anos de seu governo. Nas palavras do rei: “Buscai-me uma mulher que pratique a adivinhação para que
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eu lhe fale e a consulte”, e na imediata resposta dos seus servos: “Há uma mulher que pratica adivinhação em Endor”, o narrador faz questão de enfatizar a participação da figura feminina como principal agente das práticas ocultas.
Vez ou outra, porém, encontramos na Bíblia, narrativas que atribuem à mulher uma função religiosa de relevância para a sociedade. É o caso das profetisas. Todavia, esse papel social “é, no geral, de tipo carismático, o que sublinha o fato de não ser normalmente reconhecido como uma prática institucionalizada” (RAMOS, 2001, p. 35).
No campo da moral, o adultério e a prostituição foram reconhecidos como males sociais vinculados especificamente à figura feminina. Entre os vários escritos do Antigo Testamento que tratam especificamente de questões morais relacionadas à figura feminina encontram-se os livros sapienciais, escritos com a finalidade de oferecer conselhos práticos para o bem viver. O livro de Provérbios, obra canônica da Bíblia hebraica produzida entre os séculos X e V a.C., contém uma gama enorme de orientações práticas para os jovens a fim de que eles adquiram a sabedoria e escapem das garras da mulher estrangeira e sedutora. Nele, o sábio orienta a seu filho:
Meu filho, guarda as minhas sentenças, conserva os meus preceitos; guarda os meus preceitos e viverás, a minha instrução seja a menina dos teus olhos. Ata-a aos dedos, escreve-a na tábua do coração; dize à sabedoria: “Tu és minha irmã”. Chama a inteligência de tua parenta, para que te guarde da mulher estrangeira, da estranha cuja palavra é sedutora: Estava na janela de minha casa, olhando pelas frestas, e vi os jovens ingênuos e percebi entre as crianças um rapaz sem juízo! Ele passa ao lado, perto da esquina onde ela está, e vai para a casa dela, na bruma, ao entardecer, no coração da noite e da sombra. Uma mulher lhe vem ao encontro, vestida como prostituta, com falsidade no coração. Ela é esperta e insolente, e os seus pés não param em casa: ora está na rua, ora está na praça, espreitando todas as esquinas. Ela o agarra e o beija, e depois diz de modo sério: “Ofereci um sacrifício de comunhão, porque hoje cumpro o meu voto, por isso saí ao teu encontro, ansiosa por ver-te e te encontrei! Cobri a cama de colchas, de tecidos bordados, estendi lençóis do Egito. Perfumei o quarto com mirra, aloés e cinamomo. Vem embriaguemonos com carícias até o romper do dia, saciemo-nos com amores. Pois o meu marido não está em casa, ele fez longa viagem, levou a bolsa com o dinheiro e não voltará até a lua cheia”. Com tantos discursos o apanha, e o atrai com lábios lisonjeiros; o infeliz corre atrás dela, como o boi vai ao matadouro, como se embaraça um cervo pego na rede, como o pássaro que voa para a armadilha, sem saber que perderá a vida. Agora escutai-me, meus filhos, prestai atenção às minhas sentenças: não se extravie o teu coração por seus caminhos, não te percas em seus trilhos. Pois ela assassinou a muitos, e os mais fortes foram as suas vítimas; sua casa é o caminho do Xeol, suas escadas levam para os átrios da morte (Pr 7,1-27 – BJ).
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O livro de Eclesiástico ou Sabedoria de Jesus Ben Sirá, literatura sapiencial deuterocanônica do Antigo Testamento produzida no século II a.C., segue a mesma trilha. Nele, o autor aponta, dentre outras coisas, uma série de cuidados que o homem deve ter em relação à mulher. Ben Sirá aconselha aos homens:
Não te entregues a uma mulher, para que ela não usurpe tua autoridade. Não vás ao encontro de cortesã, para que não caias em suas ciladas. Não te entretenhas com bailarina, para que não sejas seduzido por suas artimanhas. Não fites uma jovem, para não ser pego na armadilha quando ela espiar. Não te entregues às prostitutas, para não perderes o teu patrimônio. Não gires o teu olhar pelas ruas da cidade e não vagueies por seus lugares desertos. Desvia o teu olho de mulher formosa, não fites beleza alheia. Muitos se perdem por causa da beleza de mulher, por sua causa o amor se inflama como fogo. Não te assentes nunca à mesa com mulher casada, não banqueteies com ela tomando vinho, a fim de que o desejo não te desvie para ela, e, na tua paixão, escorregues para a perdição (Eclo 9,2-13 – BJ).
O autor de Eclesiástico leva aos extremos o seu sentimento misógino quando coloca sob suspeita o caráter moral das mulheres. Segundo ele,
Qualquer ferida, menos a do coração; qualquer malícia menos a da mulher; qualquer miséria, menos a causada pelo adversário; qualquer injustiça, menos a que vem do inimigo. Não há pior veneno que o da serpente, não há pior cólera que a da mulher. Prefiro morar com leão ou dragão a morar com mulher perversa. A perversidade da mulher muda a sua fisionomia, obscurece-lhe o rosto como o de urso. O seu marido senta-se entre amigos e contra a vontade geme amargamente. Pouca maldade é comparada com a da mulher, caia sobre ela a sorte dos pecadores. Como ladeira arenosa para os pés de velho, assim é mulher faladeira para marido tranquilo. Não te deixes prender pela beleza da mulher, não te apaixones por mulher. É motivo de ira, descaramento e grande vergonha mulher que sustenta o seu marido. Coração abatido, semblante triste, coração ferido; eis a obra de uma mulher má. Mãos inertes, joelhos vacilantes, assim é a mulher que não proporciona felicidade ao marido. Foi pela mulher que começou o pecado, por sua culpa todos morremos. Não dês saída à água, nem liberdade de falar à mulher má. Se ela não obedece ao dedo e ao olho, separa-te dela (Eclo 25,13-26 – BJ, Itálicos nossos).
O registro acima é, possivelmente, um das mais tristes e preconceituosas descrições da imagem feminina encontradas em textos canônicos ou deuterôcanônicos do Antigo Testamento. As figuras de linguagem utilizadas pelo autor como parâmetro de comparação para revelar o caráter moral da mulher revelam a aversão de uma cultura patriarcal à figura feminina. A maior malícia, a pior cólera, e grande maldade pertencem à natureza
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feminina. Encarar bestas ferozes como um leão ou Dragão é mais fácil que estar diante de uma mulher perversa. Sua beleza física é vista como um laço, uma tentação. A obra prima de uma mulher resume-se a ferir corações e a entristecer semblantes. Ela é, em última instância, a grande responsável por todas as desgraças que a raça humana vivencia. Ela trouxe o pecado e a morte ao mundo. Daí, a necessidade de mantê-la em absoluta sujeição ou afastar-se definitivamente dela.
Como se pode constatar, a mulher passou, aos poucos, a ser descrita como fonte de tentação e de males, em alusão ao quadro narrado no livro de Gênesis capítulo três, texto este que se tornou uma espécie de referência e paradigma de interpretação negativa da figura feminina e que consolidou na cosmovisão dos israelitas uma imagem pessimista e sombria da mulher (RAMOS, 2001, p. 34-37).
2.2 O LUGAR DA MULHER NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA
Como pudemos constatar anteriormente, os povos da Antiguidade PréClássica fizeram uso dos mitos religiosos para compreender, explicar e legitimar seus respectivos mundos. A interpretação mítica consiste em uma forma de discurso pela qual,
[...] um povo explica aspectos essenciais da realidade em que vive: a origem do mundo, o funcionamento da natureza e dos processos naturais e as origens dos povos, bem como seus valores básicos. O mito caracteriza-se sobretudo pelo modo como essas explicações são dadas, ou seja, pelo tipo de discurso que constitui (MARCONDES, 2000, p. 20).
Os gregos, no entanto, se destacaram dentre esses povos pela tentativa de superação das formas anteriores de explicação do mundo que privilegiavam o mito religioso como sendo o recurso por excelência para a interpretação da realidade. Eles abriram um novo caminho para a interpretação do mundo: a possibilidade de se compreender o kosmos a partir do próprio kosmos. Isso não significou o fim do discurso mítico, ao contrário, indicou o surgimento de um ‘novo mito’, o mito da explicação racional, que serviria de parâmetro para a interpretação da realidade.
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A maneira filosófica grega de interpretar o mundo e a realidade ao seu redor, caracterizada pela filosofia produzida nas colônias gregas do Oriente e do Ocidente, a partir do século VI a.C., deu inicio às análises e orientações significativas no campo da história, da política, da teoria do direito e da sociedade (MONDIN, 2005, p. 19-45). Nesse sentido, é necessário fazer referência, por exemplo:
[...] aos pensadores pré-socráticos, como Parmênides, para quem o caminho que conduz à verdade é aquele que “diz que o ser é e que o não-ser não é”; ou Heráclito, que afirma que o mundo é movimento e contradição: “esse mundo, igual para todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez; foi, é e sempre será um fogo eternamente vivo, acendendo-se e apagando-se conforme a medida”. Ainda se poderia designar as ideias de Empédocles (“às vezes, do múltiplo cresce o uno para um único ser; outras, ao contrário, divide-se o uno na multiplicidade”) ou de Anaxágoras (“todas as outras coisas participam de todas as coisas”) (BRESSAN, 2008, p. 30).
Serão, no entanto, os filósofos do período socrático que darão novo impulso para a elaboração e estruturação de um pensamento racional. Os principais pensadores desse período foram Sócrates, Platão e Aristóteles. Platão e Aristóteles, a partir de suas obras, deixaram grandes contribuições para a posteridade nas áreas política, jurídica e social. Seus pensamentos moldaram significativamente a maneira ocidental de se enxergar a vida em sociedade e a maneira de se compreender os papéis que homens e mulheres ocupam nas relações intersocietárias. São essas contribuições que traremos à luz quando abordarmos a condição social da mulher na civilização grega.
2.2.1 O Status Social da Mulher no Mundo Grego
A História da Grécia geralmente é abordada a partir dos diferentes períodos históricos que a caracterizaram, a saber, o homérico, o arcaico, o clássico e o helenístico. Estes períodos foram assim denominados devido às análises da literatura e das artes plásticas produzidas em diferentes momentos históricos, elementos estes que refletem não apenas o desenvolvimento como também as mudanças na vida política, social e na maneira de interpretar o mundo deste povo (RODRIGUES, 2001, p. 81).
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No período homérico (c. 1100-800 a.C.) a organização política e econômica da sociedade era relativamente simples. A aristocracia, formada por clãs ou grupos de famílias consanguíneas descendentes de um mesmo antepassado, controlava os meios de produção compostos pelas melhores terras, escravos e ferramentas. A produção era baseada no trabalho escravo e na mão-de-obra de rendeiros hereditários que entregavam a seus credores parte da produção agrícola a fim de evitar a escravidão. O poder político e religioso era exercido pelo patriarca em cada clã. Em situações de crise, os clãs se reuniam em unidades maiores chamadas frátrias ou tribos, dando origem às primitivas monarquias que servirão de base para o surgimento das cidades-estados gregas nas épocas posteriores. Nestes casos, geralmente os aristocratas elegiam um dentre eles para ocupar a função de rei com base em sua bravura e em suas habilidades bélicas (PEDRO, LIMA e CARVALHO, 2005, p. 52-54).
Os primeiros dados significativos sobre a condição feminina entre os povos gregos encontram-se neste período, nas obras poéticas de Homero, denominadas Ilíada e Odisseia. A sociedade grega foi uma sociedade essencialmente masculina cuja vida pública girava em torno de dois polos essenciais, a saber, a guerra e a política (RODRIGUES, 2001, p. 83). Sendo assim, é natural que os protagonistas das narrativas homéricas sejam homens. A Ilíada, por exemplo, conta as façanhas de Aquiles e Heitor, dentre outros personagens, durante a Guerra de Tróia, e a Odisseia narra os feitos de seu principal personagem, o herói Odisseu ou Ulisses durante sua viagem de volta à Grécia, através do Mediterrâneo, depois da Guerra de Troia (PEDRO, LIMA e CARVALHO, 2005, p. 54).
Contudo, o fato de homens ocuparem o lugar central nos referidos poemas não significa dizer que as mulheres estavam excluídas do mundo destes heróis. Ao contrário, elas de uma forma ou de outra os completam,
[...] quer como recompensas merecidas e símbolos sexuais, quer como progenitoras, esposas ou amas. Essa atitude é a confirmação de uma herança de determinados modelos de conduta, que foram proeminentes durante a Idade do Bronze, em que os homens eram guerreiros idealizados e as mulheres essencialmente produtoras de filhos. [...] Entre estas mulheres é possível estabelecer grupos socialmente diferenciados: se por um lado temos as esposas, mães e
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filhas de heróis, por outro temos as servas e as cativas [...] (RODRIGUES, 2001, p. 83).
Na literatura homérica a mulher tinha um status social bem definido. Ela era a esposa e a senhora da casa e tinha como principais funções a responsabilidade gerar filhos legítimos, de cuidar das atividades domésticas como fiar, tecer e lavar roupas, de comandar as servas nos serviços domésticos e de administrar juntamente com seu esposo os bens da casa (RODRIGUES, 2001, p. 86). Como se pode notar, a esfera de atuação da mulher estava restrita ao lar.
No período arcaico (c. 800-500 a.C.), momento em que ocorre a passagem da ruralização para a formação da pólis grega, as transformações econômicas e sociais foram acompanhadas por mudanças na área da política. A aristocracia passou a assumir em definitivo o lugar do rei. O governo passa a ser exercido por um órgão executivo, o arcontado, que era monopolizado de modo exclusivo pela nobreza aristocrática. Os altos investimentos na agricultura, com a finalidade de prover alimentos suficientes para o sustento da cidade, levaram ao surgimento e enriquecimento rápido de uma nova camada social grega, a dos proprietários de terras que produziam e comerciavam o azeite e o vinho. Os camponeses pobres permaneciam oprimidos (PEDRO, LIMA e CARVALHO, 2005, p. 55).
No período arcaico a mulher permanece ligada à casa e à família, e a sua função de assegurar a descendência ao senhor da casa mantém-se inalterada. Sua imagem, porém, sofre mudanças significativas. O poeta Hesíodo, representante desta época, apresenta um quadro do sexo feminino extremamente negativo. A mulher é apontada como a fonte de todas as mazelas e desgraças que recaíram sobre o mundo e é considerada como sendo um mal necessário para a continuidade da comunidade por causa da sua condição de geradora de homens. O mito de Pandora, conforme registrado por Hesíodo, expressa de modo nítido essa tendência e é considerado “o primeiro sinal declarado de misoginia na cultura grega” (RODRIGUES, 2001, p. 88).
Além de responsável pelos males que assolam o mundo, Pandora também é apresentada por Hesíodo, como a progenitora de todas as mulheres:
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“Dela descende a geração das femininas mulheres. Dela é a funesta geração e grei das mulheres, grande pena que habita entre homens mortais, parceiras não da penúria cruel, porém do luxo” (HESÍODO, 1995, p. 126).
O mito de Pandora descreve as etapas de criação da primeira mulher, que veio à existência, por ordem de Zeus, com o propósito de se vingar de Prometeu pelo crime de roubar o fogo dos deuses e dá-lo aos homens. De acordo com os desígnios dos deuses, ela foi criada para ser de bela aparência e cheia de maldade em seu coração. Os deuses deram a Pandora um vaso contendo os males e enfermidades do mundo e Zeus a enviou como presente a Epimeteu, que não levando em conta o conselho de Prometeu para não receber presentes do ‘pai de homens e deuses’, a tomou para si. Então, Pandora abriu o vaso que trouxera consigo e daí por diante, a morte, as doenças e todas as sortes de males se espalharam sobre a raça de homens que antes viviam em paz e sem infortúnios (GRIMAL, 2005, p. 353-354).
Apesar de extenso, transcrevemos a seguir, parte do mito que descreve com riqueza de detalhes as características ‘naturais’ da mulher criada, segundo a vontade de Zeus, conforme narrativa de Hesíodo:
[...] Encolerizado, disse-lhe Zeus que ajunta nuvens: “Filho de Jápeto, mais que todos fértil em planos, alegras-te de ter roubado o fogo e enganado minha inteligência, o que será uma grande desgraça para ti próprio e para os homens futuros. Para compensar o fogo lhes darei um mal, com o qual todos se encantarão em seu espírito, abraçando amorosamente seu próprio mal”. Assim falou, e riu alto o pai de homens e deuses. Então ordenou ao ilustre Hefesto que o mais rápido possível misturasse terra com água e ali infundisse fala e força humanas, e que moldasse, de face semelhante à das deusas imortais, uma forma bela e amável de donzela; depois ordenou a Atena que lhe ensinasse trabalhos, a tecer uma urdidura cheia de arte; a Afrodite dourada, que lhe espargisse a cabeça com graça, penoso desejo e inquietação que devora os membros. Que nela colocasse uma mente desavergonhada e um caráter fingido, ordenou a Hermes mensageiro, o matador do monstro Argos. Assim falou, e eles obedeceram a Zeus soberano, filho de Crono. Logo o célebre deus coxo moldou-a da terra, à semelhança de uma virgem respeitável, seguindo a vontade do filho de Crono; deu-lhe um cinto e enfeitou-a a deusa Atena de olhos brilhantes; as deusas Graças e augusta Persuasão envolveram seu corpo com joias douradas; as Horas de belas cabeleiras coroaram-na com flores primaveris; Palas Atena ajeitou no seu corpo todo o ornamento. Então, o mensageiro matador de Argos fez em seu peito mentiras, palavras sedutoras e um caráter fingido, por vontade de Zeus que grave troveja; assim o arauto dos deuses nela colocou linguagem, e chamou essa mulher Pandora, porque todos os que têm moradas olímpias deram essa dádiva, desgraça para os homens que vivem de pão. Depois, quando completou o irresistível profundo engano, o Pai
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enviou a Epimeteu o célebre matador de Argos, o rápido emissário dos deuses, levando o presente. E Epimeteu não pensou no que lhe dissera Prometeu: nunca um presente aceitar de Zeus olímpio, mas mandar de volta, para que não venha a ser um mal para os mortais. Mas ele, depois de o receber, bem quando tinha o mal, compreendeu. Antes, de fato, as tribos dos humanos viviam sobre a terra sem contato com males, com o difícil trabalho ou com penosas doenças que aos homens dão mortes. {Rapidamente em meio à maldade envelhecem os mortais} Mas a mulher, removendo com as mãos a grande tampa de um jarro, espalhou-os, e preparou amargos cuidados para os humanos. Sozinha ali ficava a Antecipação, na indestrutível morada, dentro, abaixo da boca do jarro, e para fora não voou. Pois antes baixou a tampa do jarro por vontade de Zeus que ajunta nuvens, o detentor da égide. Mas outras incontáveis tristezas vagam entre os homens. Na verdade, a terra está cheia de males, cheio o mar; doenças para os humanos, algumas de dia, outras à noite, por conta própria vêm e vão sem cessar, males aos mortais levando em silêncio, já que privou-as de voz Zeus sábio. Assim, de modo algum pode-se escapar à inteligência de Zeus (HESÍODO, 2012, p. 65-71).
O mito de Pandora declara abertamente uma perspectiva misógina do sexo feminino. As figuras de linguagem utilizadas para descrever a mulher reforçam aos extremos essa ideia. A mulher é identificada como uma agente do mal que se apresenta de forma encantadora como um presente dos deuses aos homens. Apesar da beleza e das competências femininas que receberia como presente das deusas, Pandora seria dominada pelo desejo, teria uma ‘mente desavergonhada’, receberia ‘um caráter fingido’, e seria dotada de uma habilidade sem igual para mentir e seduzir o homem. O mito apresenta o mundo dos homens antes e depois da criação de Pandora. Antes, havia perfeita paz e harmonia e os homens eram livres das doenças e mazelas do mundo. Com a introdução da mulher no mundo dos homens, aquilo que era ordem e beleza tornou-se caos e feiura.
No período arcaico, a distinção entre o gênero masculino e feminino e a consequente inferiorização da mulher passou a ser representada através do contraste de diferentes figuras. O gênero masculino geralmente era retratado como sendo correspondente à cultura, à civilização, à guerra, à política, à razão, à luz, à ordem ou ao cosmos. Em contra partida, o feminino foi vinculado à natureza, à misantropia, à atividade doméstica, à noite e ao caos (RODRIGUES, 2001, p. 88).
Em todas as obras poéticas desse período que tratam da distinção entre o homem e a mulher delineia-se um mesmo esquema narrativo:
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[...] as mulheres são um suplemento, uma peça acrescentada a um grupo social que, antes do seu aparecimento, era perfeito e feliz; formam um genos, um gênero à parte, como se elas se reproduzissem por si próprias [...] O feminino é a imperfeição (SISSA, 1990, p. 98).
O período clássico (c. 500-338 a.C.) foi caracterizado principalmente pela bipolarização da Grécia entre as cidades-estados de Esparta e de Atenas. Entre os anos 460 a 430 a.C., Atenas atingiu o clímax de sua vida política e cultural, tornando-se a cidade-Estado mais importante da Grécia. Essa posição foi consolidada depois das guerras médicas, quando Atenas liderou a defesa do mundo grego e derrotou os persas. Ao libertar as cidades gregas da Ásia Menor Atenas teve seu prestígio aumentado. Enquanto expandia e fortalecia seu imperialismo, internamente aprimorava a experiência democrática, instaurada desde 508 a.C. através de uma revolta popular chefiada por Clístenes. É o princípio de um sistema de governo democrático que passa a ser exercido pelo povo que uma vez reunido na ekklesia – assembleia decide o destino da polis – cidade. Contudo, no sistema democrático ateniense nem todos podiam participar efetivamente dos debates da Assembleia, mas somente o demos, o ‘povo’, os cidadãos, aqueles que possuíssem direitos de cidadania. Tais direitos excluíam as mulheres, os estrangeiros e os escravos da participação na vida política da cidade. Entre o número restrito de pessoas que constituíam a classe de cidadãos, aqueles que se destacavam por sua oratória, eloquência e conhecimentos na área da política acabavam exercendo influência sobre os demais componentes do demos, e assumindo a responsabilidade de governar a cidade (PESSANHA, 1991, p. 8-9).
Durante o período clássico o status social da mulher grega resumia-se basicamente em permanecer encerrada e confinada à parte da casa que era reservada às mulheres, o chamado gineceu (PINTO, 2004, p.140). Atenas geralmente é apresentada como modelo desta prática graças às referências encontradas em fontes aristotélicas. Contudo, é preciso considerar que Aristóteles fez referência a uma situação que ocorria especialmente entre a nobreza e os grupos sociais mais abastados, que insistiam em imitar o comportamento da elite dominadora da época, os aristoi. Aparentemente, esta prática não se estendia às classes menos abastadas. Em relação aos pobres,
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os registros históricos dão conta de que as mulheres estavam diretamente envolvidas, com seus maridos, na luta diária pela sobrevivência, além das que trabalhavam como amas ou daquelas que subsistiam economicamente empregando-se no mercado (RODRIGUES, 2001, p. 91-92).
Esparta era outra importante cidade-estado deste período. A partir do século VII a.C. a monarquia perdeu seu poder. Este sistema de governo não foi extinto nem substituído por outro. Ao contrário, passou a ser exercido por dois reis, que possuíam funções militares e religiosas. Um conselho formado por aristocratas anciãos, a Gerusia, era responsável pela elaboração das leis. O poder executivo era exercido pelo Eforato, órgão composto por cinco aristocratas eleitos pela assembleia formada por cerca de oito ou nove mil cidadãos, todos eles guerreiros, que detinham o poder absoluto de Esparta. Diferente de Atenas, a sociedade espartana era essencialmente guerreira. Sua fama e eficácia na área bélica deveu-se ao fato de eles se dedicarem inteiramente à prática esportiva e militar, deixando a cargo dos hilotas, escravos de guerra que formavam a grande massa de trabalhadores nas terras do Estado e nos lotes dos espartanos, a responsabilidade de produzir o sustento para a cidade (PEDRO, LIMA e CARVALHO, 2005, p. 57).
A educação espartana exigia, além dos rigores das práticas físicas e militares, total obediência dos jovens para com os mais velhos e o Estado. As crianças eram selecionadas desde o nascimento e preparadas rigorosamente durante sua infância e juventude para se tornarem verdadeiros cidadãos espartanos. O processo ocorria da seguinte maneira:
Ao nascer, a criança espartana era examinada pelos éforos. Se apresentasse algum defeito, era sacrificada em nome da eugenia (pureza racial). Aos sete anos era colocada sob os cuidados do Estado; a partir dos doze educada no campo, onde aprendia a suportar os rigores de uma vida simples, desprovida de conforto. Assim, os fracos eram eliminados. Até aos 60 anos os espartanos estavam obrigados ao treinamento militar (SCHNEEBERGER, 2006, p. 58).
Na cidade de Esparta a condição social da mulher também era diferente. Enquanto que em Atenas o espaço social da mulher restringia-se basicamente ao recinto interno do lar, a sociedade espartana reconhecia a importância do papel das mulheres, juntamente com seus maridos, pais, irmãos e filhos, para o
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desenvolvimento e manutenção da pólis. Diferente das mulheres atenienses, que parecem ter sido enclausuradas em vida, as mulheres espartanas viviam para o exterior e participavam ativamente da vida da sociedade.
[...] A maior evidência dessa participação ativa era o fato de serem treinadas na luta, tal como os homens, chegando a rivalizar com eles. Como em Esparta os cidadãos eram primeiro que tudo soldados, eximiamente treinados para a defesa e uso da comunidade, as suas esposas acompanhavam-nos nessas funções de dedicação cívica. Assim, trazer filhos ao mundo era a tarefa mais importante das espartanas, já que o Estado se encontrava constantemente em guerra e a produção de soldados era uma prioridade. [...] Em Esparta, pelas razões acima referidas, os trabalhos domésticos eram deixados para mulheres de outros grupos sociais, hilotas ou periecas, dado que as espartanas ocupavam-se de uma sólida educação que lhes permitisse servir o Estado o melhor possível [...] (RODRIGUES, 2001, p. 97-98).
O período helenístico (c. 338-146 a.C.) foi marcado, em particular, pela crise da pólis grega e pelas conquistas de Alexandre, o Grande, filho de Filipe II da Macedônia, que juntamente com seus generais disseminou a cultura helênica por todo o Oriente. O helenismo marcou o período de transição para o domínio e apogeu do Império Romano (GUNNEWEG, 2005, p. 245-246).
Alexandre, o Grande, assumiu o trono com vinte anos de idade e morreu ainda jovem, com trinta e dois anos. Apesar de ter sido um exímio estrategista militar, geralmente ele é lembrado por ter sido um grande estadista e visionário. As contribuições deixadas por ele mudaram definitivamente as relações entre o mundo oriental e ocidental e possibilitaram a construção de uma nova civilização mundial. Alexandre foi o grande responsável,
[...] pela fusão do Ocidente com o Oriente. Derrubando a parede que estava entre o Oriente e o Ocidente, ele foi capaz de abrir as portas do comércio. Através da propagação do idioma grego, a língua franca, o mundo capacitou-se para a comunicação. A cultura grega quebrou as barreiras raciais, sociais e nacionais. A miscigenação das raças estimulou um espirito de cosmopolitanismo, um sincretismo religioso e um interesse no indivíduo (HALE, 2001, p. 12).
Na Macedônia, o status social feminino era um pouco melhor que em outras regiões da Grécia. No transcurso do terceiro século a.C.,
[...] algumas mulheres capazes alcançaram posições de autoridade. Havia, no entanto, um profundo contraste entre a elite e as massas. Ocasionalmente, as cortes concediam emancipação a mulheres da nobreza, mas a posição das mulheres comuns era tão inferior e sem esperança como as do resto do mundo grego (PINTO, 2004, p. 141).
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Apesar de haver a necessidade de se distinguir, no período helênico, a mulher grega, a típica ateniense, da mulher no mundo grego, pode-se afirmar que, a situação geral delas modificou-se significativamente neste tempo. Na literatura que reflete as transformações geradas neste período, encontramos, por exemplo, em Plutarco (c. 46 d.C. – 126 d.C.), evidências de que a mulher grega encontra alguma liberdade para expressar seus sentimentos, suas verdadeiras paixões. Ela passa a ser vista de forma mais positiva como ‘companheira espiritual do homem’ e o casamento é enaltecido ao se considerar o papel da mulher como essencial para o equilíbrio da sociedade (RODRIGUES, 2001, p. 99-100).
A obra de Plutarco intitulada Diálogo sobre o Amor apresenta uma abordagem positiva sobre o amor conjugal heterossexual, em oposição ao amor pederástico. A relação heterossexual foi por muito tempo estigmatizada e considerada pelos gregos um mal necessário para a manutenção da sociedade e para a preservação da prole humana. A relação pederástica, em contrapartida, foi defendida por uma longa tradição literária, poética e filosófica como sendo a única manifestação legítima do verdadeiro amor (PLUTARCO, 2009, p. 52).
Plutarco, em seus diálogos, defende a legitimidade do casamento heterossexual e a sacralidade das relações sexuais entre um homem e uma mulher que assumiram pacto de fidelidade entre si. Segundo ele.
[...] a união com mulheres, enquanto esposas, é princípio de amizade, semelhante à comunhão dos mais importantes rituais. Pequena é a dose de prazer, mas o respeito que daí resulta a cada dia, a graça, o afeto mútuo e a confiança provam que nem as gentes de Delfos estão loucas quando chamam a Afrodite Harmonia, nem Homero, quando designa essa união de Amizade (PLUTARCO, 2009, p. 120-121).
A novidade do pensamento de Plutarco jaz na apologia que ele apresenta da relação conjugal entre marido e mulher como sendo a verdadeira expressão do amor, valorizando substancialmente o papel da mulher no casamento, pois enfatiza a importância do enlace matrimonial baseado no amor e não em mera norma de conduta social. Ao assumir essa postura, Plutarco caminha na contra mão do pensamento platônico, que tanto o
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influenciou, e de boa parte da tradição filosófica de sua época. A partir dos diálogos de Plutarco,
[...] há que refazer toda a lógica do amor platônico à imagem de novos protagonistas, um homem e uma mulher, quebrando a ligação de exclusividade que Eros manteve, durante séculos, com a pederastia, enquanto exercício de aprendizagem e amadurecimento. Não sendo ainda possível falar de igualdade de sexos no casamento que Plutarco preconiza, a mulher desempenha, nesse contexto, um papel cada vez mais importante e decisivo (JESUS, 2009, p. 17-18).
Mesmo diante das importantes contribuições produzidas no período helênico com o intuito de dar visibilidade e resgatar a imagem social da mulher na sociedade grega, o fato é que ela jamais “atingiu um nível completo de emancipação da tutela parental. Como jamais conseguiu desempenhar um papel político de relevância, a não ser nos bastidores, [...]” (RODRIGUES, 2001, p. 100).
2.2.2 O Status Social da Mulher na Concepção Platônica
O período clássico é conhecido historicamente como a época dos grandes filósofos gregos tais como Sócrates, Platão e Aristóteles. Foram eles, dentre outros, que deram um novo impulso à construção do pensamento racional que serviu como alicerce para a consolidação do pensamento ocidental das épocas posteriores. Foram eles, também, Platão e Aristóteles em particular, que através dos seus escritos, providenciaram a matéria-prima para a construção racional de uma perspectiva que obscureceu a imagem da mulher e que possibilitou o surgimento de uma ideologia que defendeu a superioridade do homem em relação à mulher no Ocidente cristão, como verificaremos a seguir.
A fim de compreender com maior clareza a estrutura ideológica que serviu, dentre outras, como fonte para a elaboração de um discurso que silenciou e invisibilizou a figura feminina na história do Ocidente, analisaremos a perspectiva de Platão sobre as relações de gênero estabelecidas entre homens e mulheres no seio de uma sociedade utópica idealizada por ele num de seus principais clássicos, a República, para em seguida, apresentar uma
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análise crítica de seu pensamento comparando os elementos que foram destacados na República com os pressupostos encontrados em outras obras de sua autoria.
A escolha da República como principal porta de entrada para o pensamento platônico está ancorada em alguns pressupostos. O primeiro deles encontra-se nas seguintes palavras de Durant:
A República, é um tratado completo, Platão reduzido a um livro; nele encontraremos a sua metafísica, sua teologia, sua ética, sua psicologia, sua pedagogia, sua política, sua teoria da arte. Nele encontraremos problemas exalando modernidade e sabor contemporâneo: comunismo e socialismo, feminismo, o controle de natalidade e eugenia, problemas nietzschianos de moralidade e aristocracia [...] – está tudo ali. É um banquete para a elite, servido por um anfitrião generoso (DURANT, 2000, p. 41).
Em segundo lugar, pressupomos que uma leitura panorâmica da República possibilita extrair elementos vinculados às primeiras concepções platônicas sobre a origem da sociedade e dos diferentes papéis sociais que os homens e mulheres desempenharam nela. Para Platão a sociedade como um todo era um reflexo do homem na sua individualidade. Sendo assim, ao analisarmos sua visão utópica acerca da maneira pela qual a sociedade deveria ser estruturada, teremos condições de compreender como as relações entre homens e mulheres eram concebidas, e, só então, poderemos identificar as raízes históricas que possibilitaram a invisibilização da mulher nos primórdios da história do pensamento cristão no Ocidente e que permitiram o surgimento de uma ideologia que legitima de maneira camuflada a prática da violência contra a mulher na atualidade.
Finalmente, é preciso mencionar que Santo Agostinho, o principal pensador cristão que utilizaremos como fonte de leitura para uma melhor compreensão histórica do surgimento de um discurso misógino no seio do cristianismo, foi profundamente influenciado pelo pensamento platônico.
Antes de abordar a visão platônica acerca da natureza da mulher e de sua posição no contexto da República, é necessário abrir um breve parêntese e apresentar um personagem de fundamental importância para a elaboração e consolidação da filosofia grega em geral e do pensamento platônico em particular, a saber, o grande filósofo Sócrates.
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O pensamento filosófico platônico parece ser um reflexo das ideias de Sócrates. Tal premissa pode ser evidenciada a partir de uma prática comum encontrada em vários escritos de Platão, tais como Defesa de Sócrates, República, Timeu-Crítias, Banquete, Fédon, dentre outros, que serão utilizados a seguir, onde Sócrates aparece como principal personagem de enredos descritos em forma de diálogos que tinham por finalidade mostrar o caminho para a apreensão do verdadeiro conhecimento. Nestas obras, Platão ocupa o lugar de porta-voz de Sócrates.
Sócrates (469 a.C. – 399 a.C.) nasceu em Atenas numa época em que a cidade havia atingido o ponto alto de seu esplendor artístico, poderio militar e econômico e morreu pouco tempo antes de seu declínio. Infelizmente tudo o que se conhece sobre o pensamento filosófico socrático vem de fontes externas, de outros autores que falaram em seu nome, tais como Xenofonte, Platão e Aristóteles, uma vez que ele próprio não deixou nenhuma produção escrita (MONDIN, 2005, p. 47-49).
Sócrates iniciou seus estudos no campo da filosofia ainda jovem e experimentou uma mudança radical em sua vida ao interpretar uma mensagem de Apolo que o oráculo de Delfos entregou a Querefonte, um amigo seu. De acordo com a mensagem, Sócrates era o mais sábio dentre todos os homens. Essa revelação causou-lhe, e não somente a ele como também aos sábios do seu tempo, uma grande inquietude que só se dissipou quando ele finalmente compreendeu o real significado do vaticínio. Diante de um público ávido por entender sua verdadeira ocupação e missão, o filósofo apresentou a seguinte apologia: Por favor, Atenienses, não vos amotineis, mesmo que eu vos pareça dizer uma enormidade; a alegação que vou apresentar nem é minha; citarei o autor, que considerais idôneo. Para testemunhar a minha ciência, se é uma ciência, e qual é ela, vos trarei o deus de Delfos. Conhecestes Querefonte, decerto. Era meu amigo de infância e também amigo do partido do povo e seu companheiro naquele exílio de que voltou conosco. Sabeis o temperamento de Querefonte, quão tenaz nos seus empreendimentos. Ora, certa vez, indo a Delfos, arriscou esta consulta ao oráculo — repito, senhores; não vos amotineis — ele perguntou se havia alguém mais sábio que eu; respondeu a Pítia que não havia ninguém mais sábio. Para testemunhar isso, tendes aí o irmão dele, porque ele já morreu. Examinai por que vos conto eu esse fato; é para explicar a procedência da calúnia. Quando soube daquele oráculo, pus-me a refletir assim: “Que quererá dizer o deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito sábio nem
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pouco; que quererá ele, então, significar declarando-me o mais sábio? Naturalmente, não está mentindo, porque isso lhe é impossível.” Por longo tempo fiquei nessa incerteza sobre o sentido; por fim, muito contra meu gosto, decidi-me por uma investigação, que passo a expor [...] (PLATÃO, 1987, p. 37).
Na busca por compreender o verdadeiro significado daquele oráculo, Sócrates, a partir das premissas, “só sei uma coisa, e é que nada sei” e “conhece-te a ti mesmo” (DURANT, 2000, p. 33), estruturou uma nova maneira de produção do conhecimento, ou de superação da simples opinião na busca pela verdade, fazendo uso de um método singular de abordagem que ele popularizou e que ficou conhecido como maiêutica. Através da ironia o homem é desarmado de seu autoconhecimento e levado a buscar e encontrar, ‘parir’, respostas próprias para os dilemas da vida.
A ironia é uma espécie de simulação, mas em Sócrates, ela tem a finalidade de pôr a descoberto a vaidade, de desmascarar a impostura e seguir a verdade. [...] Com suas perguntas, Sócrates deixa embaraçado e perplexo aquele que está seguro de si mesmo, fá-lo ver novos problemas, desperta a sua curiosidade e estimula-o a refletir. [...] Por causa deste aspecto o método de Sócrates é chamado de maiêutica (MONDIN, 2005, p. 50).
A partir deste método, Platão (427 a.C. – 347 a.C.), discípulo de Sócrates e uma das maiores figuras da filosofia de todos os tempos, elaborou uma vasta produção bibliográfica analisando diferentes aspectos da vida dos seres humanos, a saber, questões de ordem metafísica, ética e epistemológica.
Platão construiu seu pensamento filosófico baseado numa premissa dualista que concebia a realidade a partir de dois reinos distintos, a saber, o mundo das Ideias e o mundo sensível (MONDIN, 2005, p. 63-67). O reino das Ideias contemplava os padrões perfeitos e constantes de todas as coisas, enquanto, o mundo sensível continha as cópias imperfeitas e transitórias da realidade: “Perfeitas e imutáveis, as ideias constituiriam os modelos ou paradigmas dos quais as coisas materiais seriam apenas cópias imperfeitas e transitórias. Seriam, pois, tipos ideais, a transcender o plano mutável dos objetos físicos” (PESSANHA, 1991, p. 22-23).
Platão acreditava que a alma era imortal e que tinha sua origem no mundo das Ideias. Ele defendia ainda que a alma era o princípio determinante que uma vez atribuído ao indivíduo antes ou no momento do seu nascimento
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legitimava sua condição de ser humano no mundo. O corpo, com suas necessidades e interações físicas, ao contrário, pertencia ao mundo material, temporal e inconstante, e era visto como sendo essencialmente mal e como um grande obstáculo no processo de busca e apreensão do verdadeiro conhecimento. No Fédon, após discutir a futilidade da busca do verdadeiro conhecimento pelas vias sensoriais, Platão (1991, p. 119) mostra todo o seu desprezo pelo corpo.
[...] durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos! Ora, este objeto é, como dizíamos, a verdade. Não somente mil e uma confusões nos são efetivamente suscitadas pelo corpo quando clamam as necessidades da vida, mas ainda somos acometidos pelas doenças — e eis-nos às voltas com novos entraves em nossa caça ao verdadeiro real! O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que se diz) não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer! Vede, pelo contrário, o que ele nos dá: nada como o corpo e suas concupiscências para provocar o aparecimento de guerras, dissenções, batalhas; com efeito, na posse de bens é que reside a origem de todas as guerras, e, se somos irresistivelmente impelidos a amontoar bens, fazemo-lo por causa do corpo, de quem somos míseros escravos! Por culpa sua ainda, e por causa de tudo isso, temos preguiça de filosofar. Mas o cúmulo dos cúmulos está em que, quando conseguimos de seu lado obter alguma tranquilidade, para voltar-nos então ao estudo de um objeto qualquer de reflexão, súbito nossos pensamentos são de novo agitados em todos os sentidos por esse intrujão que nos ensurdece, tonteia e desorganiza, ao ponto de tornar-nos incapazes de conhecer a verdade. Inversamente, obtivemos a prova de que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos-á necessário separarnos dele e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos. Só então é que, segundo me parece, nos há de pertencer aquilo de que nos declaramos amantes: a sabedoria.
O reconhecimento acerca da malignidade do corpo resulta na necessidade de afastar-se de seus impulsos ao máximo durante a vida. Como consequência deste afastamento, o ser humano passa a encarar a morte com serenidade, uma vez que ela torna-se o único instrumento capaz de purificar a alma e promover em definitivo sua libertação da alma da prisão corporal na qual ela se encontra. A esse respeito assim se expressou Platão (1991, p. 121):
Mas a purificação não é, de fato, justamente o que diz uma antiga tradição? Não é apartar o mais possível a alma do corpo, habituá-la a evitá-lo, a concentrar-se sobre si mesma por um refluxo vindo de todos os pontos do corpo, a viver tanto quanto puder, seja nas
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circunstâncias atuais, seja nas que se lhes seguirão, isolada e por si mesma, inteiramente desligada do corpo e como se houvesse desatado os laços que a ele a prendiam? [...] Ter uma alma desligada e posta a parte do corpo, não é esse o sentido exato da palavra "morte"? [...] E os que mais desejam essa separação, os únicos que a desejam, não são por acaso aqueles que, no bom sentido do termo, se dedicam à filosofia? O exercício próprio dos filósofos não é precisamente libertar a alma e afastá-la do corpo?
Além da visão pessimista que Platão nutria a respeito do corpo, ele defendia ainda que o comportamento humano era proveniente de três principais fontes, que foram definidas como sendo o desejo, a emoção e o conhecimento. Todo indivíduo, afirmou ele, possui, em graus variados, todos estes elementos em sua natureza e a posição que cada um ocupa na ordem social estabelecida depende em grande medida da fonte que predomina em sua natureza (PLATÃO, 1965a, p. 232). Durant (2000, p. 47) resume esta particularidade do pensamento platônico nos seguintes termos:
Desejo, apetite, impulso, instinto são uma coisa só; emoção, espírito, ambição e coragem são uma coisa só; conhecimento, pensamento, intelecto, razão são uma coisa só. O desejo tem o seu centro no baixo-ventre, um explosivo reservatório de energia, fundamentalmente sexual. A emoção tem o seu centro no coração, no fluxo e na força do sangue; é a ressonância orgânica da experiência e do desejo. O conhecimento tem o seu centro na cabeça; ele é o olho do desejo e pode se tornar o piloto da alma. [os que são guiados pelo desejo] dominam e manipulam a indústria. [os guiados pela emoção] fazem os exércitos e as Marinhas do mundo. [os guiados pelo conhecimento] iriam governar.
A alma determinava, em última instância, o valor humano inerente ao indivíduo e, consequentemente, sua posição natural no contexto de uma sociedade. As primeiras considerações platônicas acerca da superioridade do homem em relação à mulher foram baseadas, como veremos adiante, na crença da diferença constitucional da alma, sob a premissa de que a alma masculina é, por natureza, superior à alma feminina (BERMAN, 1997, p. 250).
Alicerçado numa visão dicotômica de mundo e de realidade, Platão elaborou dentre outros temas, um discurso pormenorizado a respeito da origem e da estrutura das relações estabelecidas pelos homens na vida em sociedade. Seus conceitos políticos encontram-se bem desenvolvidos no clássico que traz por título República e que analisaremos a seguir.
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Uma vez apresentadas as razões que nos levaram à escolha desta obra, procederemos a seguir, com uma leitura panorâmica da mesma a fim de extrair dela alguns recortes que nos serão úteis para a compreensão da maneira como homens e mulheres se relacionam e quais são os papéis sociais de cada um deles de acordo com o pensamento platônico. Apesar de não se saber com certeza como a República foi originalmente estruturada, a crítica geralmente elenca cinco principais divisões para esta obra, de acordo com a distribuição dos temas ali tratados (BACCOU, 1965a, p. 8-9).
O Livro I escrito como uma espécie de prólogo aborda o problema da justiça em termos simples como se apresenta na vida cotidiana. O enredo está estruturado a partir do registro de diálogos entre vários personagens, a saber, Sócrates o porta-voz de Platão, um homem idoso chamado Céfalo e seu filho Polemarco, Trasímaco um pensador sofista e os dois irmãos mais jovens de Platão, Adimanto e Glauco (BACCOU, 1965a, p. 10-15).
A justiça como tema inicial do diálogo é definida por Céfalo, em primeira instância, como o “dizer a verdade e devolver [a cada um] o que se recebeu” (PLATÃO, 1965a, 72). Este conceito é questionado por Sócrates como sendo uma maneira superficial de analisar o tema. O debate entre Sócrates, Polemarco e Trasímaco, segue sem que se dê uma resposta definitiva para o problema levantado: qual é a verdadeira natureza da justiça (BACCOU, 1965a, p. 15-19).
Uma vez que se demonstrou não ser coisa fácil chegar a uma definição exata de justiça, os Livros II, III e IV tratam de examiná-la a partir do contexto de uma cidade perfeita. Como tal cidade nunca existiu, nem existe, é necessário imaginar sua fundação. A partir da concepção de que a justiça enquanto virtude é comum ao homem e à cidade, e que na cidade ela se encontra inscrita em caracteres maiores, e consequentemente, mais fáceis de decifrar, convém estudá-la primeiro e, a seguir, aplicar os resultados à alma humana (BACCOU, 1965a, p.19-24).
Platão descreve a gênese da cidade natural que surge primariamente para suprir as necessidades básicas do próprio homem. Nas palavras do filósofo, “o que dá nascimento a uma cidade – disse eu – é, creio, a impotência de cada indivíduo de bastar-se a si próprio e a sua necessidade de uma
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multidão de coisas” (PLATÃO, 1965a, p. 122). A partir desta premissa, ele descreve as etapas de crescimento e desenvolvimento das primeiras cidades onde as pessoas inicialmente viviam um estilo de vida simples. Com o passar do tempo tais cidades foram se especializando através da divisão social do trabalho até se constituírem em Estado com suas múltiplas complexidades. A partir da realidade concreta Platão discorre sobre a passagem desta cidade natural para a cidade justa. O grande segredo para a construção de uma sociedade justa é o investimento na educação do homem desde sua infância, que deverá contribuir para o desenvolvimento das virtudes da sua alma e para o fortalecimento do seu corpo (PLATÃO, 1965a, p. 122-134).
Na cidade perfeita idealizada por Platão, varões de idade bem educados e experientes, e que possuam, no mais alto grau, o senso do interesse comum serão apontados como líderes. Guerreiros serão educados e estrategicamente distribuídos a fim de assegurar a proteção da mesma. Viverão em acampamentos comuns e não possuirão dinheiro, terra ou habitação. Permanecerão unidos e fiéis ao papel de servidores da comunidade (PLATÃO, 1965a, p. 194-195).
A situação econômica da cidade deverá ser equilibrada. Nem muito rica para evitar a ociosidade e a moleza, nem muito pobre a fim de evitar a inveja e os maus sentimentos que conduzem às desordens. Sua extensão territorial é aquela que conserva ao Estado a sua perfeita unidade (BACCOU, 1965a, p. 25).
A crença em Deus, na condição de um Ser Supremo, e na imortalidade pessoal são elementos fundamentais, na perspectiva platônica, para que uma cidade seja forte e bem estruturada. O Ser Supremo, e criador de todas as coisas, descrito por Platão é comparado a um hábil artesão. Nas palavras do filósofo:
Este artesão a que me refiro não é unicamente capaz de fazer toda a espécie de móveis, como produz ainda tudo o que brota da terra, plasma todos os seres vivos, inclusive a si próprio, fabricando, além disso, a terra, o céu, os deuses, e tudo o que há no céu, tudo o que há debaixo da terra, no Hades (PLATÃO, 1965b, p. 220).
A fé em Deus desperta a esperança, a devoção e o sacrifício. Além disso, ela pode “incitar ou obrigar, pelo medo, o individualista a moderar um
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pouco a sua ganância, a controlar um pouco a paixão” (DURANT, 2000, p. 51). A fé em Deus será a amalgama que dá forma e sustenta esta sociedade utópica. A união entre as diferentes classes sociais, elemento fundamental para a saúde e consolidação do Estado, será firmada por meio do fundamento religioso. O sentimento de unidade será instilado no povo a partir da crença num mito fundante. Nas palavras do filósofo:
[...] tentarei persuadir, primeiro os chefes e os soldados, depois os outros cidadãos, [...] que na realidade eram formados e educados no seio da terra, eles, suas armas e tudo o que lhes pertence; que, depois de enformá-los inteiramente, a terra, sua mãe, os deu à luz; que a partir daí, devem encarar a região onde habitam como mãe e nutriz, defende-la contra quem a ataque e tratar os outros cidadãos como irmãos e filhos da terra como eles (PLATÃO, 1965a, p. 191192).
O discurso religioso será utilizado, ainda, como recurso para justificar e legitimar a divisão social da referida cidade:
[...] Sois todos irmãos na cidade, dir-lhes-emos, continuando esta ficção; mas o deus que vos formou introduziu o ouro na composição daqueles dentre vós que são capazes de comandar: por isso são os mais preciosos. Misturou prata na composição dos auxiliares; ferro e bronze, na dos lavradores e outros artesãos. Comumente, gerais filhos semelhantes a vós mesmos; mas como sois todos parentes, pode acontecer que do ouro, nasça um rebento de prata, da prata um rebento de ouro e que as mesmas transmutações se produzam entre os outros metais. [...] deus ordena aos magistrados que vigiem atentamente as crianças, que tomem muito cuidado com o metal misturado em suas almas e, caso seus próprios filhos apresentem mistura de bronze ou de ferro, que sejam impiedosos com eles e lhes concedam o gênero de honor devido à respectiva natureza, relegando-os à classe dos artesãos e dos lavradores. Mas, se destes últimos nasce um rebento cuja alma contenha ouro ou prata, o deus quer que o honrem, elevando-o à categoria de guardião ou de auxiliar, por que um oráculo afirma que a cidade perecerá quando for guardada pelo ferro ou pelo bronze (PLATÃO, 1965a, p. 192).
Fundada sob os princípios supracitados, se a cidade for perfeita, manifestará inevitavelmente quatro virtudes essenciais. A primeira delas, a sabedoria, suprema virtude do Estado, encontra-se entre os líderes e através deles alcança toda a comunidade. A segunda virtude, a coragem, está vinculada à classe dos auxiliares, guardiões do dogma da cidade e responsáveis pela proteção do seu território. A próxima virtude, a temperança, é comum a todas as classes do Estado, e é por meio dela que é possível manter uma relação equilibrada entre as classes através do reconhecimento
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dos elementos superiores e da submissão voluntária dos elementos inferiores da sociedade. A última das virtudes, a justiça, é finalmente apresentada como sendo aquela que constitui a própria condição das outras virtudes. Geradora de ordem e força, a justiça está na origem de todo o processo moral. Desse modo, ela é definida como sendo o princípio da divisão do trabalho e da especialização das funções, onde cada classe cumpre sua tarefa e o recrutamento destas classes ocorre de acordo com as aptidões naturais de cada um (BACCOU, 1965a, p. 26-27). Para Platão, a justiça é o resultado da manifestação destas três virtudes no contexto social:
Creio que na cidade o complemento das virtudes que examinamos, temperança, coragem e sabedoria, é o elemento que conferiu a todas o poder de nascer e, após o nascimento, as salvaguarda, enquanto continua presente. Ora, afirmamos que a justiça seria o complemento das virtudes procuradas, se encontrássemos as três outras (PLATÃO, 1965a, p. 218).
A respeito da divisão social do trabalho, e de sua relação com a perfeita ordem na sociedade, ele continua dizendo:
[...] se houvesse que decidir qual destas virtudes é a que, por sua presença, contribui principalmente para a perfeição da cidade [...] Assim a força que contém cada cidadão nos limites de sua própria tarefa, concorre para a virtude de uma cidade com a sabedoria, a temperança e a coragem desta cidade. [...] Mas acaso não dirás que a justiça é essa força que concorre com as outras para a virtude de uma cidade? [pergunta Glauco]. Sim, seguramente (PLATÃO, 1965a, p. 218).
Nos Livros V, VI e VII Platão aborda as particularidades da cidade justa, sua organização, seu governo, as qualidades requeridas a seus magistrados e um plano completo de educação para a formação de seus líderes. Dentre o povo, os melhores cidadãos serão escolhidos para serem os guardiões da cidade e dentre os guardiões, os melhores serão os governantes da cidade (BACCOU, 1965a, p. 28-29).
Há um espaço reservado, em particular no Livro V, para tratar da condição das mulheres nessa sociedade perfeita. Na primeira menção que o referido livro faz a respeito do papel das mulheres na sociedade idealizada por Platão, elas são apresentadas de modo rápido e superficial vinculadas ao “casamento e à procriação dos filhos” (PLATÃO, 1965a, p. 202).
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Após um longo discurso sobre a necessidade de se desenvolver nos homens as virtudes que servem como alicerce para a consolidação da cidade perfeita, a saber, a sabedoria, a coragem, a temperança e justiça, qualidades que deverão se manifestar nos cidadãos desta sociedade utópica, Platão é instigado por Glauco e seus amigos a tratar com maior clareza acerca do papel social da mulher nesta comunidade. Glauco solicita: “[...] no que te concerne, não te canses de responder às nossas indagações, da maneira que te parecer boa; de nos dizer que espécie de comunidade se estabelecerá entre os nossos guardiães no que tange aos filhos e às mulheres [...]” (PLATÃO, 1965b, p. 6).
Uma primeira abordagem dos diálogos travados, daí por diante, parece indicar que Platão abre um precedente para que as mulheres dos guardiões possam desempenhar as mesmas funções que eles. É dito que elas deveriam receber a mesma formação que os homens no que concerne à música, à ginástica e as artes “atinentes à guerra e exigir delas os mesmos serviços [prestados pelos homens]” (PLATÃO, 1965b, p. 9).
Àqueles que questionaram sobre a diferença constitucional entre os gêneros masculino e feminino e que defenderam, com base nessa premissa, a impossibilidade da mulher ocupar uma função social que por natureza pertenceria ao homem, Platão (1965b, p. 13) respondeu:
Se, portanto, se evidencia que os dois sexos diferem entre si quanto às suas aptidões para exercer certa arte ou certa função, diremos que é preciso consignar esta arte ou esta função a um ou a outro; mas se a diferença consiste somente no fato de a fêmea conceber e o macho engendrar, nem por isso aceitaremos como demonstrado que a mulher difere do homem sob o aspecto que nos preocupa, e continuaremos pensando que os guardiães e suas mulheres devem desempenhar os mesmos empregos.
E insistiu ainda:
Por consequência, meu amigo, não há emprego concernente à administração da cidade que pertença à mulher enquanto mulher, ou ao homem enquanto homem; ao contrário, as aptidões naturais se distribuem igualmente entre os dois sexos, e é conforme à natureza que a mulher, tanto quanto o homem, participe de todos os empregos, ainda que seja, em todos, mais fraca que o homem (PLATÃO, 1965b, p. 14).
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E, finalmente, conclui sua defesa à favor delas dizendo:
Assim, as mulheres de nossos guardiães despirão as vestimentas, pois a virtude tomará o lugar destas; participarão da guerra e de todas as fainas que concernem à guarda da cidade, sem se ocupar de outra coisa; só que, no serviço, lhes atribuiremos a parte mais leve devido à fraqueza do seu sexo (PLATÃO, 1965b, p. 17).
Após discorrer sobre a condição da mulher, Platão elabora um minucioso tratado sobre o processo de formação pessoal a que deverão ser submetidas as crianças, a fim de que suas verdadeiras qualidades naturais se manifestem e elas possam ocupar seus respectivos lugares na sociedade. Através deste expediente será possível reconhecer quem são aqueles verdadeiramente habilitados para o exercício do governo.
O Livro VII inicia com um das produções platônicas mais belas e conhecidas no campo da filosofia, a chamada alegoria da caverna. Nela, Platão desenvolveu uma tese sobre o processo de apreensão do verdadeiro conhecimento. O filósofo explica através desta alegoria a maneira pela qual o homem percebe o mundo sensível, que é acessado através dos sentidos, e mostra o caminho para a ascese ao mundo inteligível apreendido somente através da razão. A alegoria da caverna descreve homens que vivem, desde sua infância, na condição de prisioneiros acorrentados numa espécie de caverna sem a possibilidade de acessar o mundo exterior, pessoas, objetos, coisas, a não ser por meio de sombras que são projetadas numa parede que está diante deles, pela luz de um fogo acesso. Uma vez que um deles consegue se libertar desta condição e entra em contato com o mundo exterior percebe a situação de engano em que permanecera e finalmente começa a contemplar a verdadeira realidade. O processo de descoberta da verdade é lento. Aos poucos, o homem que estava acostumado com a escuridão e com as sombras, começa a apropriar-se do mundo real, primeiramente através dos reflexos das coisas na superfície das águas e no céu estrelado, até conseguir olhar firmemente para o sol, fonte de toda a luz e de toda realidade. Daí por diante torna-se responsável por conduzir outros ao conhecimento da verdadeira realidade (PLATÃO, 1965b, p. 105-108). Na aplicação prática desta alegoria, Platão (1965b, p. 109) faz as seguintes considerações:
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Agora, meu caro Glauco – continuei – cumpre aplicar ponto por ponto esta imagem ao que dissemos mais acima, comparar o mundo que a vista nos revela à morada da prisão e a luz do fogo que a ilumina ao poder do sol. No que se refere a subida à região superior e à contemplação de seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma ao lugar inteligível, não te enganarás sobre o meu pensamento, posto que também desejas conhecê-lo. Deus sabe se ele é verdadeiro. Quanto a mim, tal é a minha opinião: no mundo inteligível, a ideia do bem é percebida por último e a custo, mas não se pode percebê-la sem concluir que é a causa de tudo quanto há de direito e belo em todas as coisas; que ela engendrou, no mundo visível, a luz e o soberano da luz; que, no mundo inteligível, ela própria é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e que é preciso vê-la para conduzir-se com sabedoria na vida particular e na vida pública.
Para Platão, aquele que for bem sucedido na busca pelo conhecimento, que conseguir se libertar das ilusões do mundo sensível, elevar-se ao mundo das Ideias e apreender a realidade tal qual ela realmente é, estará habilitado a desempenhar a função de governante da cidade perfeita e apto a conduzir seus cidadãos no caminho da libertação.
Além da ênfase que se dá à educação dos guardiões e ao papel social das guardiãs na cidade perfeita, um novo conceito de família é estabelecido, onde as mulheres devem ser comuns a todos eles, a fim de se evitar um colapso social que pode ser gerado pelo egoísmo que os laços familiares muito estreitos costumam causar. Platão (1965b, p.18) asseverou: “As mulheres de nossos guerreiros serão todas comuns a todos; nenhuma delas habitará em particular com nenhum deles; do mesmo modo, os filhos serão comuns e os pais não conhecerão os filhos nem estes os pais”.
Platão recomenda, ainda, intervenção do Estado na procriação e educação dos filhos, a ponto de defender que principalmente aos homens e às mulheres que se distinguirem dentre os demais por suas qualidades pessoais, seja permitido ter filhos. Ele afirmou,
É preciso, segundo os nossos princípios, tornar muito frequentes as relações entre os homens e as mulheres de escol e, ao contrário, muito raras entre os indivíduos inferiores de um e outro sexo; ademais, é preciso criar os filhos dos primeiros e não os dos segundos, se quisermos que o rebanho atinja a mais alta perfeição (PLATÃO, 1965b, p. 21).
Para garantir que o Estado ideal permaneça no domínio das puras virtualidades é necessário que a função de governara cidade seja uma
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prerrogativa daqueles que dedicarem suas vidas ao estudo da filosofia. Da mesma forma que os guardiões são escolhidos entre os melhores cidadãos, os melhores guardiões serão escolhidos para serem chefes de Estado e devidamente testados e educados para o desempenho de suas funções (BACCOU, 1965a, p. 30-40). Nas palavras do filósofo:
Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou os que hoje chamamos de reis e soberanos não forem verdadeira e seriamente filósofos; enquanto o poder político e a filosofia não se encontrarem no mesmo sujeito; enquanto as numerosas naturezas que perseguem atualmente um ou outro destes fins de maneira exclusiva não forem reduzidas à impossibilidade de proceder assim, não haverá termo, meu caro Glauco, para os males das cidades, nem, parece-me, para os do gênero humano, e jamais a cidade que a pouco descrevemos será realizada, tanto quanto possa sê-lo, e verá a luz do dia. Eis o que eu vacilei muito tempo em dizer, prevendo o quanto estas palavras chocariam a opinião comum. Pois é difícil conceber que não haja de outro modo felicidade possível, para o Estado e para os particulares (PLATÃO, 1965b, p. 45-46).
Na parte final do Livro VII, após dar as últimas instruções sobre o processo demorado e rigoroso de formação daqueles que deverão exercer a função de liderança e condução dos demais cidadãos da sociedade perfeita, Platão reforça novamente a ideia da possibilidade de participação efetiva das mulheres no exercício de atividades políticas de governo. Diante das palavras de exclamação de Glauco: “São realmente belos, Sócrates – exclamou – os governantes que acabas de modelar como um escultor!” (PLATÃO, 1965b, p. 142), Platão asseverou: “E as governantes também, Glauco – adicionei – pois não creias que o que disse se aplica mais aos homens do que às mulheres, refiro-me às que possuírem aptidões naturais suficientes” (PLATÃO, 1965b, p. 142).
Os Livros VIII e IX apresentam uma contraposição das vantagens da justiça em detrimento aos malefícios provenientes da injustiça. A cidade justa é contrastada com cidades injustas e os males de tais cidades são apontados como as causas de suas respectivas ruínas (BACCOU, 1965a, p. 43-54). Platão descreve, a partir da Aristocracia, sistema ideal de governo em sua perspectiva, o processo de degeneração dos sistemas de governo das cidades injustas, a saber: a timocracia, ou governo dos ambiciosos; a oligarquia, o governo dos ricos, desejosos de poder e de dinheiro; a democracia, o governo
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turbulento das massas populares; e a tirania, caracterizada por um governo despótico, corrompido pelas paixões (PLATÃO, 1965b, p. 144-181).
Tal análise é finalmente aplicada à alma humana. Nela, Platão admite que os mesmos males que corrompem e destroem as cidades injustas tem as mesmas causas e provocam as mesmas degradações no ser humano. Platão parte da premissa de que há uma relação estreita entre a natureza humana, o caráter do homem, e o tipo de governo que dela resulta. Ao introduzir uma abordagem sobre os tipos de governo existentes e suas debilidades, Platão questiona Glauco: “Sabes portanto – perguntei – que há tantas espécies de caracteres quantas formas de governo? [...]. [e continua] Se há, pois, cinco espécies de cidades, os caracteres da alma, nos indivíduos, também hão de ser em número de cinco” (PLATÃO, 1965b, p. 146) e continua descrevendo as formas de governo e mostrando que cada sociedade é, na verdade, o resultado daquilo que são os seus cidadãos. O resultado desta análise aponta para o fato de que a cidade perfeita é resultado da existência de homens virtuosos, o que explica em parte o alto nível de exigência para que um cidadão possa assumir alguma posição politica ou ocupar um status social nela.
O Livro X enfatiza a relação inseparável entre a justiça e a ciência e condena o discurso da poesia e das artes por mostrarem apenas a sombra da realidade e não o verdadeiro significado das coisas que, em última instância, contribuem para o desenvolvimento das virtudes exigidas na sociedade perfeita (BACCOU, 1965a, p. 54-60).
A respeito da imortalidade pessoal, que foi apontada anteriormente como elemento fundamental para a harmonia da sociedade perfeita e que aparece no discurso platônico como complemento à ideia da crença em Deus, vale dizer que, após desfrutar da felicidade que a posse da sabedoria proporciona neste mundo, a alma humana receberá, na vida eterna, recompensas dignas de sua natureza e prosseguirá na via ascendente o seu imortal destino. As últimas palavras do filósofo resumem bem esta ideia:
[...] atravessaremos então venturosamente o rio do Lete e não macularemos a nossa alma. Se portanto acreditais em mim, persuadidos de que a alma é imortal e capaz de suportar todos os males, bem como todos os bens, manter-nos-emos sempre na rota ascendente e, de qualquer maneira, praticaremos a justiça e a sabedoria. Assim estaremos de acordo com nós próprios e com os
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deuses, enquanto permanecermos aqui em baixo, e quando tivermos conquistado os prêmios da justiça, como os vencedores nos jogos que passam pela assembleia a fim de recolher os laureis. E seremos felizes neste mundo e no transcurso dessa viagem de mil anos que acabamos de contar (PLATÃO, 1965b, p. 259-260).
2.2.2.1 O Processo de Invisibilização da Mulher na Concepção Platônica e Suas Consequências: Uma Análise Crítica
Na República, Platão descreve o modelo ideal de sociedade a partir da fundação de uma cidade utópica. Ao avaliarmos seu discurso, percebemos com clareza uma acentuada valorização do homem, macho e livre, seguida de uma forte tendência à invisibilização cultural e social da mulher, traços comuns da cultura grega da época. Podemos inicialmente observar esta tendência a partir da maneira como ele elaborou o enredo da sua obra. Sua produção está estruturada em forma de diálogos. Nela, os interlocutores são todos homens. Eles são os únicos ‘agentes autorizados’ a discutir questões de ordem política e social.
O significado e as implicações da justiça como virtude que concorre para manter a perfeita ordem social da cidade, tema que serve como estrutura elementar para toda a obra, tem aplicação direta para a realidade dos homens vivendo em sociedade. A justiça se materializa quando cada indivíduo desempenha o papel social que a ele foi determinado pela Providência divina. O resultado desta atitude de resignação é o alto padrão de funcionamento da sociedade e a perfeita harmonia nas relações intersocietárias.
A cidade utópica é construída a partir de uma perspectiva androcêntrica. É uma sociedade idealizada por homens e para homens. Os líderes da cidade e aqueles que cuidam de sua proteção devem ser varões bem educados, de bom caráter, corajosos e abnegados. Uma vez que a concretização da cidade é o resultado daquilo que o homem é, surge a necessidade de se elaborar um discurso, uma ideologia que, ao ser internalizado, seja capaz estabelecer um padrão de cidadão ideal, de legitimar a ordem social representada pelo status quo e de naturalizar as relações estabelecidas entre os cidadãos, os homens e seus iguais e os homens e as mulheres.
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Uma análise a respeito da influência do discurso religioso no processo de idealização, legitimação e naturalização da ordem social na sociedade utópica descrita por Platão, à luz dos pressupostos da Sociologia da Religião, confirma a premissa de que a ideologia religiosa é o elemento evocado por excelência quando se deseja justificar uma condição social vigente num determinado grupo social. O discurso religioso parte da premissa de que a ordem social existente é a expressão óbvia da natureza das coisas, ou seja, é derivada de fontes mais poderosas do que os esforços históricos dos seres humanos (BERGER, 2004, p. 38).
Diante da fugacidade dos mundos socialmente construídos pelos homens e das constantes ameaças que tais mundos sofrem, surgem os processos fundamentais de socialização e controle social, mecanismos que servem para atenuar essas ameaças e manter a ordem e a harmonia social. Um dos principais instrumentos de socialização e controle social usado pelos seres humanos desde tempos imemoriais é o discurso de legitimação da realidade social pela via religiosa “que serve para escorar o oscilante edifício da ordem social” (BERGER, 2004, p. 42) que os seres humanos construíram. O processo de legitimação social através do discurso religioso pode ser definido nos seguintes termos:
A parte historicamente decisiva da religião no processo de legitimação é explicável em termos da capacidade única da religião de ‘situar’ os fenômenos humanos em um quadro cósmico de referência. [...] A legitimidade religiosa pretende relacionar a realidade humanamente definida com a realidade última, universal e sagrada. [...] os nomoi humanamente construídos ganham um status cósmico (BERGER, 2004, p. 48-49).
Uma vez que o discurso religioso tem o poder de sacralizar o resultado de ações meramente humanas, a crença em Deus e na imortalidade da pessoa, no discurso platônico, cria um contexto adequado a partir do qual é possível estabelecer uma justificativa apropriada para explicar e legitimar situações contraditórias que surgem na vivência em sociedade, como por exemplo, a divisão social do trabalho e os papéis sociais que os cidadãos desempenham num dado contexto, além das diferenças de gênero.
Uma vez que a vontade de Deus é declarada, cabe a cada pessoa assumir o seu lugar social de acordo com os desígnios divinos. Diante desta
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realidade, é possível compreender a atitude de resignação que se espera de cada cidadão para que haja bom funcionamento e plena harmonia na sociedade perfeita. Cada um é convencido de que o papel que ele ou ela deve desempenhar no contexto social em que vive foi definido previamente pela divindade cabendo-lhe simplesmente assumir a sua função sem questionamentos.
O discurso mítico-religioso é o instrumento recomendado por Platão para se explicar as desigualdades sociais. A ideologia que subjaz o referido discurso, procura justificar a estrutura social e legitimar o status quo vigente, e é dirigida exclusivamente para os homens. Eles é que foram gerados pela terra; deus ao cria-los infundiu-lhes os elementos, ouro, prata, ferro ou bronze, que determinam suas respectivas posições sociais na vida em comunidade.
Somente cidadãos livres e virtuosos, que possuem naturalmente ‘ouro e prata’ em sua constituição, estão autorizados a cuidar da segurança da cidade e a governá-la. Na alegoria da caverna, Platão reforça a ideia de que homens estão acorrentados pelos sentidos e de que homens podem ser libertos destas cadeias. Existe aqui um completo silenciamento em relação às mulheres. Na alegoria não encontramos termos generalizantes que possibilitem inferir a presença das mulheres entre os cativos ou libertos das cadeias dos sentidos. Ao contrário, ali só existe espaço para o gênero o masculino. O homem que se encontra dominado pelos sentidos só consegue perceber as sombras da realidade. Quando o homem se liberta dos enganos do mundo sensível e adentra o reino das Ideias, ou seja, abandona as sombras e começa a enxergar a realidade como ela realmente é ele finalmente encontra o caminho do conhecimento e torna-se sábio.
Na alegoria, preferencialmente, os filósofos devem exercer o governo da sociedade perfeita uma vez que somente eles são capazes de acessar o verdadeiro conhecimento e só eles estão habilitados a conduzir os demais no caminho da verdade. Caso homens comuns, que têm em sua natureza a composição de ‘ferro ou bronze’, assumam o governo da cidade, isto sinalizará a desordem, o caos e o eminente fim da referida sociedade, de acordo com a predição de um ‘oráculo’. Novamente a crença religiosa, amparada pela revelação divina, é evocada a fim de se evitar questionamentos relacionados
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ao status quo de cada cidadão, e inibir quaisquer anseios por revoluções sociais que gerariam, na concepção do filósofo, um suposto caos social.
Alguns autores defendem a ideia de que na sociedade utópica descrita por Platão é possível sim encontrar sinais evidentes de valorização e projeção das mulheres. Elas são apresentadas no Livro V como fortes candidatas a ocupar as funções de guardiãs da cidade, o que apontaria para o reconhecimento do lugar de igualdade de papéis sociais entre homens e mulheres na comunidade utópica. Durant (2000, p. 58), por exemplo, defende esta ideia e afirma que na sociedade perfeita idealizada por Platão,
[...] não haverá barreira sexual de qualquer espécie [...]; muito menos na educação – a menina terá as mesmas oportunidades intelectuais que o menino, a mesma chance de alçar-se às mais elevadas posições no Estado. [...] a divisão do trabalho deve ser por aptidão e capacidade e não por sexo; se uma mulher se mostra capaz de exercer a administração política, que ela governe; se um homem se mostrar capaz apenas de lavar pratos, que exerça a função para a qual a Providência o destino.
Carlos Osvaldo Pinto ao avaliar a condição da mulher na cultura grega considera Platão um revolucionário, um homem que viveu adiante de seu tempo no diz respeito à igualdade de gênero. Segundo ele,
No pensamento grego sobre a mulher, Platão foi um caso isolado. Afirmava a igualdade dos sexos. Via com naturalidade a participação da mulher em qualquer tipo de atividade social. [...]. Dada a condição de isolamento que a sociedade grega impunha às mulheres casadas e às que esperavam casar, não é de estranhar que as ideias de Platão jamais tenham “emplacado” (PINTO, 2004, p. 139-140).
O otimismo de Durant e de Pinto carece de uma argumentação teórica que seja consistente. Suas interpretações parecem equivocadas, se avaliarmos o pensamento platônico na totalidade de sua obra e em comparação com outros escritos de sua autoria.
Na República, a atitude reticente com que Platão, ao ser desafiado por Glauco (PLATÃO, 1965a, p. 202), decide retomar o assunto sobre a função social da mulher na sociedade perfeita, tema que foi introduzido no início do Livro V, parece indicar que ele não está totalmente seguro daquilo que vai dizer, ou que ele teme não ser claro o suficiente a ponto de confundir seus interlocutores. Sua apreensão pode ser notada pelo teor de sua fala:
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[...] Recordando estas questões, não sabeis que enxames de disputas despertais! Eu vi isso e evitei o assunto a pouco, no temor de que fosse causa de grandes embaraços. [...] O tema, com efeito, comporta maior número de inverossimilhanças do que os outros por nós tratados anteriormente. Não se julgará realizável o nosso projeto; e mesmo que o supusessem realizado tão perfeitamente quanto possível, ainda se duvidaria de sua preeminência. Daí porque exito um pouco em abordá-lo, meu caro camarada. Receio que tudo quanto eu disser a seu respeito se afigure apenas um vão desejo. [...] mas falar quando não estamos persuadidos e quando procuramos, como eu neste momento, é coisa aterradora e perigosa, não porque expõe ao riso, esta consideração seria pueril, mas porque, escorregando para fora da verdade, arrastamos nossos amigos na queda, num caso em que importa ao máximo não perder pé. Prosterno-me, pois, diante de Adrastéia, Glauco, pelo que vou dizer. [...] Entretanto, talvez seja bom que, depois de determinar perfeitamente o papel dos homens, determinemos o das mulheres, [...] (PLATÃO, 1965b, p. 6-7).
Na referência supracitada, ademais da clara apreensão que acomete Platão antes do início do seu discurso, encontramos também uma expressão popular comumente utilizada em seus dias que demonstra sua vulnerabilidade quanto ao assunto a que se propõe abordar, a saber, a questão do lugar da mulher na sociedade. O ditado popular “prosterno-me, pois, diante de Adrastéia”, usado por Platão, indica os riscos a que estão expostos tanto o locutor quanto seus interlocutores diante da abordagem de um tema complexo e obscuro. Baccou (1965b, p. 7-8) apresenta a seguinte nota a respeito desta conhecida expressão:
Primitivamente Adastréia parece ter personificado a Necessidade. Sócrates toma esta deusa por testemunha de que, se é levado a cometer um crime moral, não será por vontade própria, mas compelido pela insistência de seus amigos.
Além disso, nos trechos encontrados no Livro V em que Platão defende abertamente a suposta condição de igualdade da mulher em relação ao homem, ele faz questão de frisar que, mesmo podendo teoricamente ocupar as mesmas funções de um homem ela é, no exercício destes papéis, sempre “mais fraca que o homem” (PLATÃO, 1965b, p. 14), daí a necessidade de atribuir-lhe no serviço comunitário as atividades mais leves “devido à fraqueza do seu sexo” (PLATÃO, 1965b, p. 17). Essas recomendações se aplicam de modo exclusivo àquelas mulheres que hipoteticamente “possuírem aptidões naturais suficientes” (PLATÃO, 1965b, p. 142), para assumir os referidos cargos de guardiãs ou governantes.
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O desprezo à condição feminina é levado aos extremos em outro trecho da República onde a mulher é relacionada junto a escravos e animais. Ali, Platão aconselha aos jovens que cultivem as qualidades de um verdadeiro homem, a saber, a coragem, a temperança, a liberalidade dentre outras virtudes, e que não imitem as classes inferiores, das quais pertencem as mulheres, os escravos, os maus e covardes, também chamados de loucos, os ferreiros, os artesãos, os animais etc. Platão (1965a, p, 162) reitera:
Não admitiremos, pois – prossegui – que aqueles dos quais pretendemos cuidar e que devem tornar-se homens virtuosos, imitem, eles que são homens, uma mulher jovem ou velha, que injuria o marido, rivaliza com os deuses e gaba-se de sua felicidade, ou se encontra na desgraça, no luto e nas lágrimas; com maior razão ainda, não admitiremos que a imitem doente, apaixonada ou nas dores de parto. [...] Nem que imitem os escravos, machos ou fêmeas, em suas ações servis. [...] Nem, ao que parece, os indivíduos maus e covardes que praticam o oposto do que dizíamos há pouco [...]; pois é preciso conhecer os loucos e os maus, homens e mulheres, mas não fazer nada do que eles fazem e tampouco imitá-los. [...] ferreiros [...] artesãos [...] remadores [...] mestres de tripulação [...] rincho de cavalos [...] mugido de touros [...] lhes é proibido ser loucos e imitar os loucos.
Em outro trecho contendo um diálogo entre Sócrates e Glauco, em que a temática gira em torno das funções naturais de uma mulher, Platão deixa claro o seu desprezo pelo gênero feminino quando menciona os trabalhos tradicionalmente femininos em que as mulheres se destacam e a aversão que um homem deve ter a estas atividades. Platão (1965b, p. 14) pergunta ao seu amigo Glauco:
Agora, conheces alguma ocupação humana em que os homens não superem as mulheres? Alongaremos o nosso discurso mencionando a tecelagem, as pastelarias e a cozinha, labores que parecem depender das mulheres, e onde a inferioridade delas é ridícula ao mais alto grau? Tens razão – observou ele [Glauco] – ao afirmar que em tudo, por assim dizer, o sexo masculino prevalece de longe sobre o outro sexo [...].
Em um conjunto de obras, intitulado Timeu-Crítias, marcada pelo diálogo entre Sócrates, Timeu, Hermócrates, e Crítias, Platão retoma algumas ideias desenvolvidas previamente na República a respeito da justiça e dos princípios para o estabelecimento de uma sociedade justa (PLATÃO, 2011, p. 71-78). Mais adiante, ele descreve com riqueza de detalhes o surgimento, a organização e o esfacelamento de Atlântida, uma sociedade perfeita conforme
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a que foi idealizada por ele no discurso da República. Platão apresenta também no conjunto da obra, uma cosmogonia, uma visão detalhada das origens do mundo e dos seres humanos. Novamente é reforçada a ideia de que a posição social de uma pessoa depende basicamente de seu nascimento na condição de homem ou mulher.
A Atlântida descrita por Platão no Crítias é apresentada como sendo uma ilha vastíssima, perto das colunas de Hércules, no estreito de Gibraltar, e que fora habitada pelos atlantes, descendentes de Atlas, filho de Posídon, deus do mar (PLATÃO, 2011, p. 231). Os atlantes foram regidos por leis justas e eram riquíssimos. Tinham empreendido a conquista do mundo mediterrâneo, mas Atenas os repelira. Finalmente, a degeneração de seus costumes provocara a ira dos deuses, e um maremoto tragara a ilha em um dia e uma noite (PLATÃO, 2011, p. 89).
No Timeu, Platão introduz sua cosmogonia, uma de suas versões sobre a história da criação onde retrata a gênese do mundo, dos astros, dos deuses e dos seres humanos a partir da combinação de quatro elementos fundamentais, a saber, o fogo, o ar, a água e a terra (PLATÃO, 2011, p. 92-120).
Ao relatar a criação da humanidade, o filósofo apresenta a premissa da superioridade natural masculina sobre a condição feminina. De acordo com o seu discurso, Demiurgo, o artesão divino, criou os deuses para serem imortais e ordenou a eles que criassem os seres humanos com natureza mortal. O gênero humano foi criado com dupla natureza sendo a masculina o elemento predominante. No primeiro ato da criação, em que todas as almas nasceram sem desvantagem, a natureza humana surgiu na condição de raça superior com o propósito de venerar os deuses. Uma vez implantadas em corpos, as almas dos homens passaram a possuir ao mesmo tempo a faculdade de sensação, de dar respostas a estímulos externos, e os sentimentos de amor, medo e ódio. Os que dominassem essas sensações viveriam retamente. Os que fossem dominados por elas viveriam de modo injusto. Nascer outra vez numa condição inferior, como a de mulher, por exemplo, era um dos castigos imposto ao homem que vivesse injustamente. Platão (2011, p. 118-119) descreveu esse processo nas seguintes palavras:
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[...] por a natureza humana ser dupla, aquela espécie mais forte seria a que, posteriormente, se chamaria macho. Sempre que fossem implantadas nos corpos, por necessidade, e lhes fossem acrescentadas partes, enquanto outras seriam retiradas do corpo, em todas elas surgiria, necessariamente e em primeiro lugar, uma sensação única e congênita gerada por impressões violentas; em segundo lugar, o desejo amoroso, que é uma mistura de prazer e sofrimento; depois destes, o temor, a cólera e todas as sensações que se lhes seguem e todas as que por natureza são contrárias e se diferenciam destas. Se as dominarem, viverão de forma justa, mas, se forem comandados por elas, viverão de forma injusta. Aquele que viver bem durante o tempo que lhe cabe, regressará à morada do astro que lhe está associado, para aí ter uma vida feliz e conforme. Mas, se se extraviar, recairá sobre si a natureza de mulher na segunda geração; e se, mesmo nessa condição, não cessar de praticar o mal, será sempre gerado com uma natureza de animal, assumindo uma ou outra forma, conforme o tipo de mal que pratique.
A condição de inferioridade da mulher é reforçada um pouco mais adiante no término do relato que descreveu as origens do “universo até a geração do homem” (PLATÃO, 2011, p. 208). No relato platônico, a natureza primordial humana é masculina e a manutenção dos privilégios desta estirpe superior depende da capacidade do homem de dominar as paixões do corpo. Novamente ele reitera: “entre os que foram gerados machos, todos os que são cobardes e levaram a vida de forma injusta, de acordo com o discurso verossímil, renascem mulheres na segunda geração” (PLATÃO, 2011, p. 208).
Diante do que foi exposto até aqui poderíamos perguntar: no que consiste, segundo a perspectiva platônica, o real problema do sexo feminino, e o que o caracteriza como sendo mais fraco e inferior em relação ao sexo masculino?
Ao que parece, a fraqueza feminina não está apenas situada no corpo físico da mulher, estruturalmente mais frágil que o do homem. Como vimos anteriormente, o corpo, por pertencer ao mundo material, é identificado indubitavelmente como um grande obstáculo na busca pelo conhecimento. O pensamento platônico é radical em relação a essa premissa e no que diz respeito à condição feminina o dilema parece acentuar-se. Na concepção platônica, estar preso a um corpo físico é uma desventura. Se o corpo físico for feminino é um tragédia. Nascer num corpo de mulher é um castigo para covardes e injustos.
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À perspectiva extremamente negativa a respeito do corpo feminino unese a concepção de que a natureza feminina é inferior à masculina por ser ela dominada essencialmente pelo desejo sensual. Num dos muitos diálogos que estruturam o Banquete, Platão trata da real condição da natureza feminina quando discute sobre a verdadeira natureza do Amor, que ele descreve, de acordo com sua maneira dicotômica de perceber a realidade, como sendo possuidor de duas formas, tal qual se apresenta Afrodite, a deusa grega que o representa.
O primeiro amor é denominado Celestial e identifica-se com a busca do conhecimento; o segundo amor é chamado Popular e relaciona-se, dentre outras coisas, com as paixões sensuais que dominam o corpo. Platão (1991, p. 47-48) descreve estes amores e suas respectivas manifestações como se segue:
E como não são duas deusas? Uma, a mais velha sem dúvida, não tem mãe e é filha de Urano, e a ela é que chamamos de Urânia, a Celestial; a mais nova, filha de Zeus e Dione, chamamo-la de Pandêmia, a Popular. É forçoso então que também o Amor, coadjuvante de uma, se chame corretamente Pandêmio, o Popular, e o outro Urânio, o Celestial. [...] Ora pois, o Amor de Afrodite Pandêmia é realmente popular e faz o que lhe ocorre; é a ele que os homens vulgares amam. E amam tais pessoas, primeiramente não menos as mulheres que os jovens, e depois o que neles amam é mais o corpo que a alma, e ainda dos mais desprovidos de inteligência, tendo em mira apenas o efetuar o ato, sem se preocupar se é decentemente ou não; daí resulta então que eles fazem o que lhes ocorre, tanto o que é bom como o seu contrário. Trata-se com efeito do amor proveniente da deusa que é mais jovem que a outra e que em sua geração participa da fêmea e do macho. O outro porém é o da Urânia, que primeiramente não participa da fêmea mas só do macho — e é este o amor aos jovens — e depois é a mais velha, isenta de violência; daí então é que se voltam ao que é másculo os inspirados deste amor, afeiçoando-se ao que é de natureza mais forte e que tem mais inteligência.
Para Platão, o grande problema das mulheres, e daqueles que ele denomina homens vulgares, são os desejos lascivos do corpo manifestos especialmente através das relações sexuais entre homens e mulheres e entre homens e seus pares com a mera finalidade de satisfação pessoal. Este tipo de amor denominado Popular tem seu fundamento mítico na união entre ‘Zeus e Dione’, tem sua gênese ‘na fêmea e no macho’, daí sua grande fraqueza e debilidade. O amor Celestial, em contrapartida, não tem participação feminina em sua gênese, origina-se, ao contrário, de um único deus macho Urano. Não
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há participação da “fêmea mas só do macho” no surgimento dele, sendo, portanto, reconhecido como o único ato digno dos verdadeiros homens.
Noutra passagem do Banquete, Platão reforça essa ideia ao apresentar um mito cosmogônico sobre as origens do gênero humano. Nele, o filósofo afirma que nos primórdios da humanidade a natureza humana era constituída por três gêneros, o masculino, o feminino e, outro totalmente distinto dos dois que ele denominou, andrógino. A descrição do gênero andrógino é apresentada por Platão (1991, p. 58) do seguinte modo:
[...] inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor. E quanto ao seu andar, era também ereto como agora, em qualquer das duas direções que quisesse; mas quando se lançavam a uma rápida corrida, como os que cambalhotando e virando as pernas para cima fazem uma roda, do mesmo modo, apoiando-se nos seus oito membros de então, rapidamente eles se locomoviam em círculo. Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção, por terem semelhantes genitores. Eram por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham [...].
Platão alega no mito que o grande problema deste gênero foi a autoconfiança que o levou a voltar-se contra os deuses. Depois que eles deliberaram entre si sobre o destino final da raça humana, Zeus, o pai dos deuses, finalmente apresentou uma solução:
Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tornado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas (PLATÃO, 1991, p. 58-59).
A divisão do homem em duas metades tinha como propósito enfraquecer o homem. A efetivação deste ato divino causou uma mutilação na natureza original e trouxe à existência o macho e a fêmea, gêneros resultantes da tentativa de união das duas partes separadas por capricho dos deuses. O enlace entre o homem e a mulher, apesar de degenerativo, resultaria na geração e constituição da raça humana. A inclinação de mulheres para suas
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iguais seria outra consequência negativa desta mutilação. Segundo Platão (1991, p. 60):
[...] todos os homens que são um corte do tipo comum, o que então se chamava andrógino, gostam de mulheres, e a maioria dos adultérios provém deste tipo, assim como também todas as mulheres que gostam de homens e são adúlteras, é deste tipo que provêm. Todas as mulheres que são o corte de uma mulher não dirigem muito sua atenção aos homens, mas antes estão voltadas para as mulheres e as amiguinhas provêm deste tipo.
Fazendo uso de uma terminologia atual, a heterossexualidade e a homoafetividade feminina foram consideradas por Platão como condutas desviantes e tratadas de forma pejorativa ao serem comparadas com a traição, com o adultério. A união entre dois homens, no entanto, foi concebida por ele como sendo o elemento “restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana” (PLATÃO, 1991, p. 60). A homoafetividade masculina foi considerada a maior expressão possível do verdadeiro amor. Assim Platão (1990, p. 60-61) se expressou em relação a este conceito:
[...] todos os que são corte de um macho perseguem o macho, e enquanto são crianças, como cortículos do macho, gostam dos homens e se comprazem em deitar-se com os homens e a eles se enlaçar, e são estes os melhores meninos e adolescentes, os de natural mais corajoso. Dizem alguns, é verdade, que eles são despudorados, mas estão mentindo; pois não é por despudor que fazem isso, mas por audácia, coragem e masculinidade, porque acolhem o que lhes é semelhante. Uma prova disso é que, uma vez amadurecidos, são os únicos que chegam a ser homens para a política, os que são desse tipo. E quando se tornam homens, são os jovens que eles amam, e a casamentos e procriação naturalmente eles não lhes dão atenção, embora por lei a isso sejam forçados, mas se contentam em passar a vida um com o outro, solteiros. Assim é que, em geral, tal tipo torna-se amante e amigo do amante, porque está sempre acolhendo o que lhe é aparentado. Quando então se encontra com aquele mesmo que é a sua própria metade, tanto o amante do jovem como qualquer outro, então extraordinárias são as emoções que sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto de não quererem por assim dizer separar-se um do outro nem por um pequeno momento [...] A ninguém com efeito pareceria que se trata de união sexual, e que é porventura em vista disso que um gosta da companhia do outro assim com tanto interesse; ao contrário, que uma coisa quer a alma de cada um, é evidente, [...] unir-se e confundir-se com o amado e de dois ficarem um só. O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; é portanto ao desejo e procura do todo que se dá o nome de amor.
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A partir destas reflexões, fica claro que, na perspectiva platônica, a sexualidade feminina e o sexo praticado com a finalidade exclusiva de satisfação de prazeres lascivos, são grandes obstáculos para homens e mulheres no processo de desenvolvimento espiritual e de aquisição do conhecimento. Por isso todo homem sábio e virtuoso se manterá longe das mulheres e manterá o corpo sob o domínio da alma.
Como conciliar, então, a aparente contradição entre as afirmações do Livro V que enaltecem e defendem a participação efetiva da mulher na ordem política da sociedade perfeita com os pensamentos misóginos de Platão que aparecem no restante da República e nas outras obras aqui analisadas?
Schott (1996) ao analisar esse problema propõe uma solução que parece adequada. Nota-se na leitura do Livro V da República que a discussão sobre a função social das mulheres só se inicia depois um longo discurso sobre o processo de formação dos homens que dedicarão suas vidas a guardar e proteger a cidade, os denominados guardiões. As mulheres são introduzidas no discurso platônico em primeiro lugar como esposas e como geradoras de uma prole superior. Os papéis de esposa e mãe eram funções sociais femininas reconhecidas como legítimas na sociedade grega em geral. Sendo assim, as mulheres que potencialmente poderão ocupar a função de guardiãs da sociedade perfeita existem primariamente em função dos homens. Elas e seus filhos serão comuns aos guardiões não podendo identificar-se com um marido, nem com o filho gerado no seu ventre. Todas as mulheres pertencerão a todos os guardiões e todos os filhos pertencerão a todos indistintamente.
Após avaliar as condições estabelecidas por Platão no Livro V para que uma mulher seja admitida como guardiã da cidade perfeita, Schott chega à conclusão, e nisso concordamos com ele, que a única maneira de uma mulher se ‘igualar’ ao homem nesse contexto é tornando-se descaracterizada ou dessexualizada. Nessa condição, “sua natureza sexual vem a reduzir-se a simples ato biológico, despido de amor pelo cônjuge ou pela prole” (SCHOTT, 1996, p. 23). Contudo, afirma ele:
Platão nunca é bem-sucedido em seu esforço por dessexualizar as mulheres guardiãs e, pois, em fundamentar a igualdade das mulheres com os homens. Ele restringe sua afirmação de que as mulheres
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devem partilhar de todas as tarefas com os homens com o argumento de que elas permanecem inferiores (SCHOTT, 1996, p. 24).
A proposta de dessexualização da mulher apresentada por Platão é, na realidade, a confirmação de uma visão androcêntrica da realidade. Se ela deseja ocupar uma função masculina é necessário negar sua natureza feminina e assumir atributos do sexo dominante, o masculino. Em outras palavras, é necessário masculinizar-se. Uma vez masculinizada, a mulher teria condições de enveredar pelo caminho da busca pelo conhecimento e do desenvolvimento da alma. Todavia, tal proposta aparenta não ser nada mais que um blefe, que uma mera utopia, pois contradiz o pensamento platônico sobre a verdadeira natureza humana.
A possibilidade real de dessexualização da mulher depõe contra um pressuposto básico, claramente afirmado no Fédon (PLATÃO, 1991, p. 121) e em outras obras, e já discutido anteriormente, que assume o corpo como sendo um grande obstáculo para o desenvolvimento pleno da alma, sendo, portanto, necessário dominar seus instintos naturais e manter controle absoluto sobre ele a fim de se alcançar a iluminação através do conhecimento. Essa tarefa, ao que parece, só pode ser levada a cabo plenamente pelo homem ideal, o filósofo. Se, na concepção platônica, o homem comum é incapaz de encontrar o caminho do conhecimento, que se dirá da mulher!
Além disso, na história das origens da humanidade, conforme registrada no Timeu, fica perfeitamente claro que existe sim uma distinção concreta entre os sexos, sendo que a natureza masculina é, em tudo, superior à feminina (PLATÃO, 2011, p. 118-119). Na República, a mulher mais virtuosa da sociedade perfeita, aquele que hipoteticamente está apta para desempenhar a função de guardiã é caracterizada como sendo “mais fraca que o homem” (PLATÃO, 1965b, p. 14), devendo, por isso, desempenhar somente atividades mais leves por causa da “fraqueza do seu sexo” (PLATÃO, 1965b, p. 17). Vale rememorar, ainda, que um dos castigos que recaem sobre os machos que no transcurso da vida forem covardes e injustos é o renascerem “mulheres na segunda geração” (PLATÃO, 2011, p. 208).
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Diante de impasses como estes, conclui Schott (1996, p. 30):
Embora Platão argumente que a alma deve procurar escapar do corpo, o sexo, em última análise, determina o destino da alma. Não obstante apresentar argumentos em favor de almas assexuais, só o masculino é tratado como assexual. [...] Os homens devem procurar condições sob as quais o controle possa ser exercido: assim, evitam toda forma de relacionamento sexual com as mulheres. [...] Embora os homens devam aprender o autocontrole, as mulheres nem mesmo são candidatas a aprender a filosofia do amor.
Além de tudo o que foi dito até aqui a respeito da visão platônica acerca da condição feminina, poderíamos acrescentar ainda, a profunda influência que tal pensamento exerceu sobre um de seus mais destacados discípulos, o filósofo Aristóteles, e o resultado concreto desta influência nos seus escritos, em particular, no que diz respeito à posição da mulher na sua relação com o homem.
Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) estudou na Academia de Platão durante vinte anos e modificou radicalmente o pensamento dualista do seu mestre alterando as relações entre o reino das Ideias e o mundo material, que serviram de alicerce para a elaboração do pensamento platônico. Ele defendeu, em contraposição aos postulados de Platão, que as Ideias ou as formas não estavam fora da substância e sim atuando dentro dela. Aristóteles alterou o conceito de seu mestre sobre o Absoluto como causa ideal abstrata do bem, da ordem e do movimento em todas as coisas, mas não específico de qualquer delas, para formas ideais situadas dentro das coisas e características de cada substância particular (BERMAN, 1997, p. 51).
Na perspectiva de Aristóteles, contudo, a condição da mulher no gênero humano, não diferiu daquela esboçada no discurso platônico, ao contrário, tal postura foi reforçada. A novidade do pensamento aristotélico encontra-se no método que ele utilizou para justificar sua premissa de superioridade do homem em relação à mulher. A base de sua argumentação é a analogia feita a partir das diferenças que podem ser observadas e que caracterizam o macho e a fêmea no reino animal e sua aplicação aos seres humanos. Ao comparar a estrutura física entre o macho e a fêmea no reino animal, na obra intitulada História dos Animais, Aristóteles (apud SISSA, 1990, p. 102) faz a seguintes considerações:
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A fêmea é menos musculada, tem as articulações menos pronunciadas; tem também o pelo mais fino nas espécies que possuem pelos, e, nas que o não possuem, o que faz as suas vezes. As fêmeas têm igualmente a carne mais mole que os machos, os joelhos mais juntos e as pernas mais finas. Os seus pés são mais pequenos, nos animais que têm pés. Quanto à voz, as fêmeas têm-na sempre mais fraca e mais aguda, em todos os animais dotados de voz, com exceção dos bovinos: nestes, as fêmeas têm a voz mais grave que os machos. As partes que existem naturalmente para a defesa, os cornos, os esporões e todas as outras partes deste tipo pertencem em certos gêneros aos machos, mas não às fêmeas. Em alguns gêneros, estas partes existem em ambos, mas são mais fortes e desenvolvidos nos machos.
Em outra obra conhecida como Política, Aristóteles elaborou uma apologia com a finalidade de demonstrar ser obra da natureza as diferenças existentes entre os seres humanos, caracterizadas basicamente pela existência de duas classes, a saber, a dos dominadores, constituída basicamente por homens livres, e a dos dominados, entre os quais figuram as mulheres e os escravos. Novamente o filósofo utilizou a analogia entre o reino animal e os seres humanos, e após um longo discurso, ele concluiu que no reino animal “[...] o macho é por natureza superior e a fêmea inferior. Aquele domina e esta é dominada; o mesmo princípio se aplica necessariamente a todo o gênero humano” (ARISTÓTELES, 1985,1254b).
A comparação entre traços animais e humanos e a consequente inferiorização da mulher é levada às últimas consequências. O filósofo afirma:
Entre os animais, é o homem que tem o cérebro maior, proporcionalmente ao seu tamanho, e, nos homens, os machos têm o cérebro mais volumoso que as fêmeas. (...) São os homens que tem o maior número de suturas na cabeça, e o homem tem mais do que a mulher, sempre pela mesma razão, para que esta zona respire facilmente, sobretudo o cérebro, que é maior. [...] tudo o que é pequeno chega mais rapidamente ao seu fim, tanto nas obras artificiais quanto nos organismos naturais. [...] porque as fêmeas são, por natureza, mais fracas e mais frias e a sua natureza deve ser considerada como uma deformidade natural (ARISTÓTELES apud SISSA, 1990, p. 102).
Segundo Aristóteles, uma vez que a natureza encarregou-se de criar o macho e a fêmea dando-lhes características distintas, ela fez do homem a fonte da razão. Acerca das mulheres, a ideologia aristotélica afirmou que pelo fato de serem elas menos racionais que os homens, as tais eram dominadas por elementos passionais, o que gerava inúmeras diferenças comportamentais
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entre elas e eles. Berman (1987, p. 251-252) apresenta essa particularidade do pensamento aristotélico nos seguintes termos:
[...] “Uma mulher é mais compassiva do que um homem”, ensinava Aristóteles, mas “ao mesmo tempo é mais ciumenta, mais impertinente, mais inclinada a ralhar e golpear [...] mais propensa à melancolia [...] mais destituída de vergonha” - e outros traços desagradáveis. [...] Esses padrões díspares de comportamento e de habilidades de raciocínio humano estão no spiritum, princípio da alma, que, apropriadamente, é transmitido ao embrião pela secreção masculina portadora da hereditariedade, o sêmen. A secreção feminina não inclui a alma, “pois a mulher é como se fosse um homem mutilado”. Essa primeira exposição de argumentos biológicos deterministas, citando diferenças imutáveis, herdadas pela alma como a base natural para as categorias dualistas subjacentes às relações existentes, raciais e sexuais, é apresentada por Aristóteles como “óbvia” e acima de dúvidas (aspas e itálicos do próprio texto).
Aristóteles, apesar de modificar radicalmente os principais pressupostos teóricos de seu mestre, no que diz respeito à relação entre o mundo das Ideias e o mundo sensível, manteve-se irredutível quanto ao lugar da mulher na ordem social estabelecida. Se Platão desprezou a condição feminina a ponto de invisibilizá-la, Aristóteles levou essa tendência às últimas consequências.
2.2.3 O Status Social da Mulher no Mundo Romano
A história das origens de Roma é povoada de mitos e lendas que se tornaram importantes fontes de pesquisa para melhor compreendê-la. Ao lado das explicações míticas encontramos também dados históricos que possibilitam reconstruir parte da história da civilização romana.
A lenda que narra a fundação de Roma foi imortalizada por importantes autores clássicos como o poeta romano Virgílio e o historiador Tito Lívio. De acordo com a narrativa lendária, Roma foi fundada por Rômulo, cuja origem remonta à Guerra de Tróia. Enéias príncipe e um dos heróis da Guerra de Tróia, descendente da deusa Vênus, foi obrigado a fugir de Troia com alguns companheiros depois que os gregos a derrotaram. Durante a fuga eles chegaram à Itália. Ali, Enéias casou-se com Lavínia, filha do chefe de uma tribo dos latinos. Após o casamento, ele fundou uma cidade, a partir da qual os seus descendentes fundaram Alba Longa. Nesta cidade, após uma série de conflitos
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familiares internos que ocasionaram a usurpação do trono da cidade e a consequente morte do rei legítimo e de seus descendentes varões, é que nasce a lenda da fundação de Roma. De acordo com ela, Réia Sílvia, a irmã de Numitor, o rei que foi assassinado e teve o trono usurpado pelo irmão Amúlio, foi condenada à virgindade perpétua, e forçada a tornar-se uma sacerdotisa da deusa Vesta. Réia Sílvia foi então fecundada pelo deus Marte e deu à luz dois gêmeos chamados Rômulo e Remo. Temendo perder o trono, Amúlio ordenou que os meninos fossem lançados no rio Tibre. Os dois foram salvos milagrosamente e foram alimentados por uma loba que vivia às margens do rio. Posteriormente foram encontrados por um casal de pastores e criados por ele. Tempos depois, quando já eram adultos, decidiram fundar uma cidade. Na disputa pela fundação e pelo governo da cidade, Rômulo venceu o seu irmão e o matou. Assim, nascia a cidade de Roma. Ela teria se originado através da intervenção divina e nascera sob o signo da guerra (PEDRO, LIMA e CARVALHO, 2005, p. 69).
Além das explicações lendárias para a origem de Roma, existem também as interpretações fundamentadas em dados históricos. Para os historiadores, Roma foi formada por povos indo-europeus que se estabeleceram na região do Lácio, na parte centro-ocidental da península da Itália. Constantemente atacados pelos etruscos, um povo estabelecido ao norte do Lácio, os indo-europeus construíram uma fortaleza entre sete colinas. Essa cidadela militar latina passou a dominar uma passagem estreita pela qual principalmente os mercadores cruzavam o rio Tibre, ao transportar o sal do litoral até a Etrúria, era a chamada ‘rota do sal’. As classes sociais na Roma primitiva se estruturaram a partir da posse ou não da terra. Os mais antigos habitantes monopolizaram as melhores terras cultiváveis, constituindo grandes propriedades e ficaram conhecidos como patrícios. Os pequenos proprietários, artesãos e estrangeiros formavam a plebe (SCHNEEBERGER, 2006, p. 64-65).
Os historiadores e pesquisadores convencionaram dividir a história de Roma, pelo critério político, em três grandes períodos, a saber, período da Monarquia, que vai da fundação, em 753 a.C., até o ano 509 a.C.; período da República, que vai de 509 a.C. até o ano 27 a.C.; e, período do Império, que
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vai de 27 a.C. até a queda do Império do Ocidente, em 476 d.C. (PEDRO, LIMA e CARVALHO, 2005, p. 69).
No período monárquico somente os patrícios tinham direitos políticos. Eles administravam a cidade por meio dos gens, chefes das famílias que se reuniam no Conselho dos Anciãos ou Senado e aprovavam leis que deveriam ser aplicadas pelo rei. O período republicano é consequência da revolta dos plebeus, a classe oprimida, contra o sistema monárquico vigente à época. Aproveitando-se da crise política, e uma vez deposto o rei, surge um novo sistema dominante, a República aristocrática, constituída exclusivamente pelos patrícios e controlada por eles. O Senado, que era composto por trezentos membros, os mais velhos das famílias importantes de Roma, tornou-se o órgão máximo responsável por decidir questões relacionadas à paz e à guerra, controle da arrecadação de despesas do Estado e elaboração e execução de leis por meio dos magistrados. Durante este período ocorreram profundas transformações econômicas e crises políticas internas que ocasionaram dentre outras coisas, a conquista de uma série de direitos para os plebeus com o consequente fortalecimento desta emergente classe social. A expansão territorial e as crises políticas do sistema republicano prepararam o terreno para a ascensão do Império Romano. Mediante a aclamação de Otávio Augusto, primeiro imperador em 27 a.C., Roma conheceu o apogeu de sua civilização. A famosa pax romana finalmente foi estabelecida. Após um longo período de relativa paz e prosperidade o Império enfrentou crises econômicas e políticas que culminaram com sua derrocada em 476 d.C. (PEDRO; LIMA; CARVALHO, 2005, p. 68-80).
A sociedade romana encontrava-se centrada e estruturada na figura masculina. O homem era o chefe da família e o único que desenvolvia atividades vinculadas à vida pública nas assembleias, no senado, nas magistraturas, etc., ou à vida privada no seio da família.
Durante os primeiros séculos da historia romana [O período da república antiga], o pater famílias exercia absoluta autoridade sobre a esposa e os filhos. Isso incluía o direito de divórcio, de determinar o casamento das filhas e até de promover o divórcio entre a filha e o genro. Tinha poder de vida e morte sobre a família. Para a mulher o casamento significava a simples transferência da autoridade do pai para a autoridade do marido. Detinha muito pouca expressão pessoal
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e poder, tanto no ambiente familiar, como político e econômico (PINTO, 2004, p. 142).
A visão patriarcal romana é bem descrita por Cícero, um dos mais importantes pensadores do Estado Romano de meados do século I a.C. A casa paterna foi reconhecida por ele como sendo, por natureza, o alicerce ulterior do Estado. A família foi eleita como o modelo ideal, como a célula mater. da sociedade, a partir da qual o aparato do Estado seria organizado e dirigido. São dele as seguintes palavras:
[...] sendo o instituto reprodutivo, por natureza, de posse comum a todos os seres vivos, o primeiro elo de união é entre marido e mulher, o outro entre pais e filhos; em seguida encontramos uma casa, com tudo em comum. Este é o fundamento do governo civil, o berçário, por assim dizer, do Estado (CICERO, 1913, p. 57 – Tradução própria).
Entre os romanos, o status social da mulher pode ser avaliado a partir da definição do estatuto legal expresso na legislação romana que reconhecia a diferença dos sexos em masculino e feminino como um fato evidente e constatável. Na legislação romana, a divisão dos sexos era uma questão jurídica tratada, não como um pressuposto natural, mas como uma norma obrigatória. Da legalidade desta divisão dependiam a instituição e perpetuação da sociedade romana. Em contraposição à concepção aristotélica que justificava as diferenças entre os sexos a partir de diferenças biológicas naturais existentes entre o macho e a fêmea, na perspectiva dos romanos os traços biológicos não eram determinantes para considerar um ser humano macho ou fêmea, e sim a função jurídica atribuída a cada sexo, a saber, o status social de homem ou de mulher conferidos pela legislação romana. Um exemplo interessante que mostra a força da lei romana na atribuição dos papéis sociais vinculados à condição de gênero é o caso do hermafroditismo. O estatuto legal de Roma não reconhecia um hermafrodita como sendo portador de um terceiro gênero. Ao contrário, ele era declarado legalmente homem ou mulher a partir da prevalência ou não dos órgãos viris. Uma vez examinados seus órgãos, “deve decretar-se que pertence ao sexo que nele predomina: masculino ou feminino” (THOMAS, 1990, p. 129).
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Na concepção romana, a relação entre o homem e a mulher é expressa de forma concreta através da definição do casamento, como sendo o coniunctio maris et feminae, ou seja, a união de um macho e uma fêmea. É através desta união que a sociedade romana se constitui na condição de Estado. Ela é reconhecida como o veículo que possibilita a perpetuação da sociedade. A natureza jurídica do homem e da mulher unidos através do casamento evidenciava-se a partir dos respectivos títulos que eles recebem, a saber, o de “pater familias para o homem e de mater familias ou matrona para a mulher” (THOMAS, 1990, p. 132), sendo que o primeiro título fazia alusão ao cidadão livre, chefe de família, senhor da casa, a cujo poder a mulher e os filhos permaneciam em estado de sujeição, enquanto que, o segundo título referia-se à esposa de um cidadão em pleno gozo de seus direitos.
As tarefas e funções da mulher no sistema patriarcal romano foram definidas com muita clareza e se resumiam basicamente em uma tese, “[...] ser mãe dos filhos legítimos de um determinado pai para a manutenção do Estado patriarcal” (RICHTER REIMER, 2006, p. 81). Além de gerá-los, a mãe era também responsável por transmitir aos seus filhos valores de caráter cívico que tinham como finalidade corroborar para o processo de formação de um cidadão completo para o Estado. Como observa Corassin (2006, p. 273),
É a mãe que se ocupa de criar seu filho, mesmo nas famílias nobres. São numerosos, nos autores latinos, os relatos da figura da mãe de homens famosos que colocaram em primeiro lugar o comportamento de seus filhos como cidadãos, deixando em segundo plano o afeto maternal.
A esfera de atuação feminina no contexto romano geralmente estava restrita ao âmbito da casa. A mulher era representada, com muita frequência, por características que a tradição apontava como sendo valores admiráveis a serem cultivados por ela, quais sejam, “a sua vida recatada, a discrição, as suas qualidades como mãe, o seu empenho nas tarefas de fiação ou a sua capacidade de gestão da criadagem” (GUERRA, 2001, p. 107).
Apesar do quadro geral do status social feminino entre os romanos, em que as mulheres aparecem submissas, apagadas perante o homem, centradas na vida familiar e elogiadas precisamente por isso, a cultura romana apresentava uma gama de atitudes e comportamentos que oscilavam entre os
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valores tradicionais e posturas questionadoras do status quo vigente, inclusive no que dizia respeito ao papel social da mulher. Há exemplos na literatura latina de figuras femininas, as conhecidas ‘mulheres heroínas’, que se distinguiram do modelo tradicional de mulher exatamente por apresentarem comportamentos tipicamente contrários ao esperado pela sociedade da época (MITRAUD, 2007, p. 102-111).
Entre os romanos, o modelo de ‘mulher heroína’ que possivelmente mais se destacou, conforme descrição do historiador romano Tito Lívio, em sua obra colossal intitulada História de Roma: desde a sua Fundação, aparece na figura mítica de uma virgem chamada Clélia. Nesta obra Tito Lívio relata, a partir do contexto de uma guerra entre etruscos e romanos, como a corajosa Clélia, uma refém dentre outras, conseguiu fugir do acampamento em que se encontrava aprisionada sem ser notada pelos soldados e como ela libertou outras mulheres reféns, conduzindo-as e atravessando com elas a nado o rio Tibre sob ataque de flechas de seus inimigos, até entregá-las a salvo aos seus respectivos familiares. Além das mulheres que foram libertadas neste episódio, seu ato de bravura possibilitou a soltura de vários outros reféns. Sua atitude rendeu-lhe uma honraria inédita para uma mulher da época. Nas palavras de Tito Lívio (2011, P. 60):
Depois que a paz foi restabelecida, os romanos recompensaram o valor sem precedentes mostrado por uma mulher com uma honra sem precedentes, a saber, uma estátua equestre. Na parte mais alta da Via Sacra erigiu-se uma estátua que representava a donzela montada a cavalo (Tradução própria).
Tito Lívio parece admirar-se de que uma mulher possa desempenhar atos de bravura semelhantes àqueles que são comuns aos homens. Ele considera a atitude de Clélia uma ação “sem precedentes”.
A expressão latina, coniunctio maris et feminae, que define o casamento entre um homem e uma mulher aponta para o fato de que o relacionamento entre ambos tinha um caráter de complementariedade, ainda que entre desiguais. É fato que o patriarcado foi a cosmovisão estruturante da sociedade romana e consequentemente a base legitimadora do estatuto jurídico de Roma. Contudo, o direito romano não deixou de reconhecer certa autonomia jurídica
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da mulher, que se refletiu em aspectos como o nome, o divórcio, as heranças, dentre outros (GUERRA, 2001, p. 109-112).
A partir do século II a.C., a condição social feminina na sociedade romana começou a experimentar mudanças significativas que se estenderam paulatinamente durante o surgimento e a consolidação do Império Romano. Novos direitos foram concedidos a elas. Durante a República Nova elas “passaram a ter direito de herança, de realizar contratos legais e de iniciar o divórcio. [na época do Império] a mulher podia tomar decisões financeiras e matrimoniais, incluindo divórcio, sem nenhum guardião masculino” (PINTO, 2004, p. 142-143).
O resultado destas conquistas, todavia, não deixou de gerar críticas entre aqueles que defendiam a moralidade e a ordem social vigente. Este é o caso do filósofo estóico Sêneca (apud PINTO, 2004, p. 144) que, na época do Império, em meados do primeiro século da Era Cristã, questionou de modo incisivo algumas das liberdades concedidas às mulheres nos seguintes termos:
Haverá ainda alguma mulher que core ao pensar em divórcio, agora que certas senhoras nobres e ilustres contam seus anos de vida não pelo número de cônsules que viveram, mas pelo número de maridos, e saem de casa para se casar e casam-se apenas para se divorciarem?
Apesar de se reconhecer que a sociedade romana conferiu, em alguns aspectos, dignidade à figura feminina, o fato é que a mulher nunca foi colocada em condição integral de paridade com o homem. No geral ela permaneceu como coadjuvante do homem, pelo menos no que diz respeito à maior parte dos registros históricos até aqui conhecidos
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