segunda-feira, 27 de abril de 2020

Judaísmo: religião, cultura, nação




Falar sobre o Judaísmo no singular permanece um desafio porque são múltiplas a pluralidade das interpretações da Torá, e assim elas devem permanecer, mas também porque a pluralidade das formas concretas de viver este Judaísmo são bastante diversas. Ainda que as normas de comportamento ensinadas pela lei (Halakhah) sejam supostamente aplicáveis a todos os judeus, muitos deles se isentam destas com frequência. Ninguém tem, portanto, o monopólio do alcance exato da palavra "judaísmo". No entanto, neste breve estudo, gostaria de propor uma reflexão sobre um termo que creio poder aliar e orientar estas diversas expressões do Judaísmo: o da esperança. 
De fato, mesmo uma leitura superficial da Torá mostra que o texto nunca faz da resignação ao infortúnio, por mais extremo que seja, o ponto final em que o fracasso se estabeleça. Mesmo em suas terríveis Lamentações, que descrevem em detalhes sombrios a destruição do Templo de Jerusalém, o profeta Jeremias, cuja alma, segundo o mesmo, tinha despencado sobre ele, diz de repente o seguinte: "Todavia, lembro-me também do que pode dar-me esperança: Graças ao grande amor do Senhor é que não somos consumidos, pois as suas misericórdias são inesgotáveis. Renovam-se cada manhã; grande é a tua fidelidade! Digo a mim mesmo: A minha porção é o Senhor; portanto, n’Ele porei minha esperança." (3:21-24). Estas palavras não significam de modo algum que o profeta acredite que num tempo futuro a situação que está vivendo naquele momento será finalmente resolvida e que a felicidade voltará para ele. Ou, ainda, que a "bondade" do Senhor se assemelha a uma consolação ou a uma compensação depois de tantas provações. Isto equivaleria a confundir esperança com a ideia de que as aventuras temporais que causam tanto sofrimento acabarão por desembocar em um resultado positivo, mesmo à custa daqueles que perdem as suas vidas no seu desenrolar. Isto também equivaleria a não compreender o sentido desta "bondade", porque ela não é bem a que gostaríamos de receber para nós mesmos, mas, sim, aquela com a qual nos encontramos ou aquela que somos capazes de oferecer. Mas onde podemos encontrar essa força quando a vertigem do desespero faz tudo tremer? 
A esperança de Jeremias está, portanto, ligada à "renovação" da bondade do Senhor. A palavra hebraica para esta bondade é hesed, isto é, um dom de amor incondicional, um dom que se renova todos os dias, no mais íntimo de cada criatura, sem, no entanto, se assemelhar a uma felicidade, a um sucesso, a uma cura, enfim a tudo aquilo que desejamos ardentemente quando sofremos.  Mas, precisamente, querer dar um objeto definido à nossa esperança é fazer com que se perca a renovação. A esperança é experimentada a cada momento em que, apesar da nossa angústia, se renova para nós, em nós, o "foi bom", até mesmo "muito bom", da criação (Gn, 1). Que esta palavra, nunca repetida, apesar da assustadora profundidade do mal feito e do mal sofrido, continue a habitar os psiquismos, esta seria a esperança. Esperança não demonstrável por argumentos convincentes, esperança sem razão para esperar, esperança que não faz parte de nenhuma pregação, mas esperança de que tantas vidas dão testemunho na humildade dos seus dias.
Na perspectiva de Jeremias, e da Torá em geral, parece-me que a esperança é pensada e experimentada, não como garantia de uma finalidade feliz, mas como proximidade reencontrada com esse ponto de bondade pré-originária que nos leva a pensar, e, portanto, a experimentar que, por mais terrível e horripilante que seja o mal que atormenta e aflige com sua angústia, ele não é "o contemporâneo, o igual e o irmão gêmeo do bem", ele está "abaixo, inferior ao Bem" (LEVINAS, 1972, p. 89). Isto significa que a esperança está ligada à certeza de que é possível, agora, mesmo quando as trevas ameaçam, aproximar do coração da renovação diária da criação este ponto de bondade. Trata-se de um segredo esquecido, enterrado nas profundezas do psiquismo humano e combatido por ele quando este acredita que nada na história o ratifica?  Ou, ainda, quando ele prefere acreditar que se o mal obscurece a realidade em todos os níveis onde ela se expressa - espiritual, psíquico, intelectual e material - é porque o mal é definitivamente mais forte que este bem?
Os inúmeros crimes humanos, seus infortúnios tantas vezes espantosos, parecem de fato provar-nos a ilusão de tal esperança. No entanto, como diz ao seu modo a filósofa Eliane Amado Levy-Valensi, este obscurecimento e revestimento do bem pelo mal não conseguem desencorajar os humanos. Os mais justos, mesmo que permaneçam desconhecidos, estão sempre prontos a limpar um pouco de espaço - em si mesmos, em suas relações com os outros e no seu desejo de Deus - através do qual o bem poderia finalmente iluminar o mundo e permitir que as criaturas dessem graças, apesar de suas tragédias. Isso pode ser conseguido através de pensamentos, através de palavras e ações que combatem as tarefas do desespero, da mentira e da crueldade. Mas, para assim proceder, esses humanos devem também descobrir como a Unidade primeira continua a habitar neles, no mais secreto de si mesmos. Isto fica difícil porque, para realizá-lo, é necessário também desejá-lo e, para desejá-lo, é preciso força e graça, de tanto a fragmentação da realidade parecer sem solução diante de todo tipo de males que a danificam. O ser humano, então, esquece muitas vezes que "a realidade de Deus se revela nele mesmo", segundo a intuição dos místicos (LÉVY-VALENSI, 1962, p. 170).
Ora, na minha opinião, é esta esperança, seja qual for o modo concreto de pensá-la e de  experimentá-la, que acompanhou os judeus ao longo de sua história. O "corpo-a-corpo com o mal" (LÉVY-VALENSI, 1962, p. 164) que eles tinham que enfrentar tão constantemente andava de mãos dadas com uma extrema tenacidade para não ceder a ele, como se se tratasse de um destino intransponível. Por outro lado, tratava-se de "escolher a vida" (Dt, 30,19), uma vida em aliança com a palavra que diz "está bem" – e, assim, apesar do medo, até mesmo do assombro pelo mal. Se as testemunhas judaicas desta esperança suscitaram tanto denegrimento, inveja e ódio, é também porque, de fato e de direito, esta esperança diz respeito a todos os seres humanos, incluindo, naturalmente, aqueles que a recusam.
"A revelação feita a Israel diz respeito à humanidade inteira", explica assim Eliane Amado Levy-Valensi (1962, p. 603), é toda a humanidade, e toda vida singular, que necessita de uma temporalidade orientada por esta palavra "foi bom", isto é, pela paz e aliança que ela convida a acontecer entre as criaturas, enquanto o mal não cessa de crescer e prosperar na forma de divisão e hostilidade, confusão e niilismo. Mas o Ocidente cristão não teria muitas vezes sucumbido à tentação de condenar os seres humanos ao seu desamparo, ensinando que eles não poderiam fazer nada sem Salvador? O Judaísmo, em seus mais diversos componentes, por outro lado, não pleitearia, mesmo sem seu conhecimento, a causa da possibilidade do ser humano em participar dessa obra de redenção através de suas ações, palavras e pensamentos?
A vingança antissemita que ainda ressoa tantas vezes e que se enfeita com mil e uma razões, aliás contraditórias, recusa que esta esperança diga respeito a todos os seres humanos. Ora, um destino humano não é o de uma "força que segue" completamente indiferente a tudo que não seja ela, nem consiste em repetir um infortúnio recebido como herança durante sua própria vida, nem mesmo em transmiti-lo a seus descendentes.  Há certamente um "fatum inicial" cujas vidas todas são marcadas e certamente ele não se desvanece por si só; porém, ele pode ser superado por uma história criativa, graças ao Eu que dela emerge e graças às inovações de que se torna capaz. É nisso que consiste a esperança. Mas, para se chegar até ela, é necessário também que este Eu encontre as alteridades e polaridades que o enfrentam, que as reconheça mais do que queira dominá-las, assimilá-las ou destruí-las. O judaísmo ensina que, para conseguir cada dia mais uma vez, e especialmente, é claro, quando a fadiga, a confusão e a tristeza correm o risco de ganhar sua aposta destrutiva, é aconselhável continuar, dia após dia, mantendo o ouvido aberto às palavras "foi bom" (tov), enterradas no mais secreto de nosso psiquismo. Enquanto o fizermos, a aliança manter-se-á firme, apesar de tudo o que está vindo, que parece defender a causa contrária.
Catherine Chalier,  Belo Horizonte, v. 17, n. 52, p. 15   Dossiê: Judaísmo: religião, cultura, nação – Editorial

REFERÊNCIAS

CHALIER, Catherine. Lire la Torah. Paris: Seuil, 2014. 
LEVINAS, Emmanuel. Humanisme de l’autre homme. Paris: Fata Morgana, 1972.
LÉVY-VALENSI, Éliane Amado. Les niveaux de l’être: la connaissance et le mal. Paris : Presses Universitaires de France, 1962.


, Belo Horizonte, v. 17, n. 52, p. 15


[1] Tradução de Leonardo Meirelles Ribeiro, Doutor em Filosofia pela UFMG e professor substituto na mesma universidade.  

[2] Filósofa e tradutora francesa, autora de várias obras sobre as relações entre o pensamento hebraico e a filosofia. Professora emérita de filosofia na Universidade Paris Ouest Nanterre La Défense. País de origem: França. E-mail: chalc@club-internet.fr

[3] Estritamente falando, a palavra Torá, que significa ensinar, corresponde ao Pentateuco, no sentido amplo da Bíblia como um todo. Também distinguimos entre a Torá escrita, o próprio texto, e a Torá oral, Torah ché béal Pé (a Torá que está na boca, que inclui todos os comentários, incluindo o Talmude ou a Cabala, mas também os comentários filosóficos que se desenvolveram a partir dela). Veja meu livro: Chalier (2014).
, Belo Horizonte, v. 17, n. 52, p. 15



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