quinta-feira, 4 de julho de 2019

MONOGRAFIA - RAIZES HISTÓRICO-RELIGIOSAS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL - CAPITULO 1


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O DRAMA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM PROBLEMA ATUAL

A violência é um fenômeno tão antigo na história da humanidade quanto o próprio ser humano. Ela está estreitamente vinculada à natureza humana desde suas origens e, segundo a opinião de alguns que são mais pessimistas, possivelmente permanecerá entre nós até o crepúsculo da civilização. Esta característica negativa que acompanha a humanidade em sua longa trajetória histórica, e que se manifesta no cotidiano, leva-nos a refletir sobre a paradoxal condição a que estamos condicionados, a selvagem e a humana. Esta constatação não implica numa acomodação passiva diante de uma realidade inegável e assustadora, ao contrário deve levar-nos à compreensão de que o “[...] mundo se move dialeticamente, e o paradoxo da humanidade é precisamente o de, apesar de uma sempiterna propensão à violência, também carregar em si uma perene luta em busca da virtude e do bem” (PORTO, 2012, p. 11).
Na atualidade, a violência é considerada um dos grandes desafios que as sociedades modernas têm enfrentado em qualquer parte do mundo. A violência é um fenômeno que sofre constantes mudanças e que se manifesta em diferentes esferas sociais sejam elas públicas ou privadas, políticas ou ambientais. Este fenômeno pode ser definido como sendo:

[...] uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar seu desejo e sua vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta. É um meio de coagir, de submeter outrem ao seu domínio, é uma violação dos direitos essenciais do ser humano (TELES e MELO, 2012, p.13).

Outra importante definição de violência, proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS), caracteriza esta prática pelo “uso de força física ou poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação” (DAHLBEG e KRUG, 2007, p. 1165).

A definição de violência proposta pela OMS apresenta alguns elementos importantes para a compreensão deste fenômeno global. A OMS acrescenta a expressão poder ao uso da força física, o que pressupõe atos violentos resultantes de uma relação de poder entre pessoas, tais como, ameaças ou intimidações, negligência ou omissão. Ela coloca no mesmo nível a intenção de se praticar a violência e o ato violento, independentemente do resultado da ação. A concepção da OMS que define a violência apresenta também outra particularidade. Nela, a violência é tipificada como um fenômeno que pode se manifestar no âmbito individual, na esfera dos relacionamentos, e em meio a um grupo ou comunidade em geral.
A tipificação que a OMS apresenta acerca da violência recebeu a seguinte categorização: violência autoinflingida, violência interpessoal e violência coletiva. Cada uma destas categorias pode ser subdividida a fim de se estabelecer como maior clareza possível, a amplitude do ato de violência e os agentes nele envolvidos. Estas categorias são definidas e subdivididas da seguinte maneira:
Violência auto-infligida é subdividida em comportamento suicida e agressão auto-infligida. O primeiro inclui pensamentos suicidas, tentativas de suicídio [...] e suicídios propriamente ditos. A autoagressão inclui atos como a automutilação. Violência interpessoal divide-se em duas subcategorias: 1) violência de família e de parceiros íntimos – isto é, violência principalmente entre membros da família ou entre parceiros íntimos, que ocorre usualmente nos lares; 2) violência na comunidade – violência entre indivíduos sem relação pessoal, que podem ou não se conhecerem. Geralmente ocorre fora dos lares. [...] Violência coletiva acha-se subdividida em violência social, política e econômica. [...] as subcategorias da violência coletiva sugerem possíveis motivos para a violência cometida por grandes grupos ou por países (DAHLBEG e KRUG, 2007, p. 1166).

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (3 Este documento consta na íntegra no ANEXO D), um dos mais significativos documentos internacionais existentes no Brasil para tratar a problemática questão da violência contra a mulher, assim define esse fenômeno social: Artigo 1°: Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado. Artigo 2° Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica:

a. que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual; b. que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar, e c. que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra (CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, 1994).

Na abordagem que propomos fazer neste capítulo avaliaremos a manifestação da violência enquanto fenômeno social a partir da subcategoria “violência de família e de parceiros íntimos” que pertence à categoria tipificada pela OMS como “violência interpessoal”, e que a Convenção Interamericana identifica como tendo “ocorrido dentro da família ou unidade doméstica”. É no seio familiar que buscaremos compreender como se estabelece a dinâmica das relações de gênero e como se instaura o caos da violência, de modo específico, contra a mulher.
Dados concretos apontam para a necessidade de uma abordagem histórica séria ao fenômeno social da violência contra a mulher na sociedade brasileira, não somente no que diz respeito ao cenário atual como também no que concerne aos mecanismos ou raízes histórico-religiosas que implementaram, justificaram e legitimaram socialmente, de forma aberta ou camuflada, uma prática que agride frontalmente o direito e a dignidade humana da mulher, possibilitando assim a perpetuação deste ato criminoso. Este será o alvo que perseguiremos não apenas neste capítulo como também nos dois próximos capítulos que estruturam este trabalho.

1.1 RAÍZES HISTÓRICO-RELIGIOSAS DO FENÔMENO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL: UM BREVE PANORAMA

Para se estabelecer uma definição clara do significado de violência contra a mulher e compreender as implicações que advêm de tal prática é necessário, antes de tudo, levar em consideração alguns aspectos históricos que forjaram nossa identidade enquanto povo brasileiro. É fato notório que o processo de colonização do Brasil se deu a partir da influência direta de povos de cultura ocidental europeia, em especial, os portugueses. Apesar da contribuição dos nativos, denominados aborígenes, e dos escravos africanos(4), dentre outros, para a formação da identidade do povo brasileiro, a cosmovisão europeia exerceu a maior influência na formação de nossa identidade cultural por causa de sua condição de colonizadora.

(4) Dados históricos confirmam que mesmo entre os aborígenes e os africanos a visão patriarcal e androcêntrica era uma perspectiva dominante. Nessas culturas as mulheres eram consideradas inferiores aos homens e eram tratadas com violência. Entre os índios brasileiros, por exemplo, “a mulher era escrava do marido e devia acompanha-lo nas caçadas e nas guerras. [...] Muitas vezes era maltratada pelo esposo que a espancava e a esfaqueava, deixando-a com profundas cicatrizes. Em seus acessos de cólera, o botocudo servia-se de tudo que lhe caía à mão, até mesmo de tições de brasa para castigar a esposa” (ALMEIDA, 2014, p. 50). A mulher escrava, no Brasil Colonial “era considerada uma coisa e podia ser vendida, dada, alugada, como se fazia com os animais” (ALMEIDA, 2014, p. 59).


1.1.1 A Cosmovisão Patriarcal e Androcêntrica Europeia: Um Modelo de Matriz Cultural

Entre as sociedades ocidentais que participaram direta ou indiretamente do processo de colonização do Brasil, e que serviram de modelo para a constituição da identidade sociocultural do povo brasileiro, as relações de gênero, ou seja, os papéis sociais de homens e mulheres sempre foram bem definidos e suas distinções baseavam-se essencialmente numa cosmovisão patriarcal cristã da realidade social. Nelas, o papel da mulher geralmente esteve vinculado à esfera familiar e à maternidade, enquanto, ao homem foram reservadas as atividades públicas e a concentração dos valores materiais, “o que faz dele o provedor e protetor da família” (JESUS, 2010, p. 7).
Nas sociedades Antigas Pré-Clássicas ou Clássicas que serviram de referência para a formação da cosmovisão patriarcal característica das sociedades ocidentais antigas e modernas, a figura da mulher sempre esteve envolta numa nuvem de mitos quase sempre contraditórios. Simone de Beauvoir ao discutir a complexidade desse fenômeno de construção míticohistórica da figura feminina disse: 
É sempre difícil descrever um mito; ele não se deixa apanhar nem cercar, habita as consciências sem nunca postar-se diante delas como um objeto imóvel. É por vezes tão fluido, tão contraditório que não se lhe percebe, de início, a unidade: Dalila e Judite, Aspásia e Lucrécia, Pandora e Atená, a mulher é, a um tempo, Eva e a Virgem Maria. É um ídolo, uma serva, a fonte da vida, uma força das trevas; é o silêncio elementar da verdade, é artifício, tagarelice e mentira; a que cura e a que enfeita; é a presa do homem e sua perda, é tudo o que ele quer ter, sua negação e sua razão de ser (BEAUVOIR, 1970, p. 183).

O sistema de dominação patriarcal caracterizou o contexto sociocultural no Ocidente cristão durante praticamente toda sua história. Desde os primeiros séculos da Era Cristã, encontramos discursos contraditórios, como bem asseverou Beauvoir (1970), em relação à condição da mulher: ora sua imagem é divinizada, ora é demonizada. A figura feminina ocupou um papel secundário nos registros históricos deste período. Quando as mulheres aparecem, geralmente suas imagens são obscurecidas e elas são descritas como ameaças potenciais ao homem e à sociedade devendo, por isso, ser mantidas sob rigoroso controle.
Os documentos comumente utilizados pelos historiadores para reconstruir a vida quotidiana das pessoas na Idade Média silenciam ou dão poucas pistas acerca do status social da mulher neste período histórico. Geralmente elas estão ausentes ou ocupam uma posição minoritária nos registros documentais.
Pelo menos duas razões podem ser apontadas para justificar o processo de invisibilização da mulher na Idade Média. A primeira está relacionada ao fato de que os produtores da história foram quase que exclusivamente homens que, na maioria dos casos, possuíam concepções equivocadas e preconceituosas a respeito do sexo feminino. Apesar de encontramos homens e mulheres como protagonistas dos registros históricos na Idade Média, existe uma relação desigual entre eles:

[...] dos homens sabemos sempre o nome, e quase sempre a formação cultural, as amizades, as deslocações, a data e o lugar do nascimento e morte: se são homens da Igreja, sabemos a que ordem pertenceram e que papel representaram; se são leigos, podemos determinar-lhes a condição social e o nível cultural. [...] Das outras protagonistas da nossa história não sabemos o nome nem a biografia; as mulheres entram nos textos da literatura pastoral e pedagógica através de uma série de categorias femininas que deveria compreender e compendiar todas as suas inumeráveis condições individuais (CASAGRANDE, 1990, p. 101-102).

A outra razão diz respeito ao espaço social em que a vida da mulher se desenrolava, a esfera privada do lar. No ambiente familiar, as mulheres permaneciam vinculadas e dependentes dos homens. Eles, os pais, os maridos e até os filhos quando atingem a maior idade, eram considerados seus tutores e os grandes responsáveis pela proteção e defesa delas. Poucas foram aquelas que conseguiram romper essa tradição. Foram estas que causaram preocupações para a sociedade por assumirem uma postura tida como subversiva em relação à ordem pública vigente à época. Foi contra elas, em particular, que os homens eclesiásticos, a exemplo de Santo Agostinho, produziram seus tratados teóricos (SILVA, 2001, p. 143).
No século XIII a literatura religiosa trouxe à luz uma personagem quase desconhecida mencionada no livro de Tobias, obra pertencente à tradição deuterocanônica do Antigo Testamento. O nome dela era Sara. O texto de Tobias tornou-se uma espécie de referência para os múltiplos compêndios que surgiram à época porque descrevia com exatidão e clareza as qualidades de uma boa esposa que a sociedade da época assumia como sendo o ideal de comportamento social para o sexo feminino.
Obediente, casta, devota, Sara encarna aos olhos dos clérigos ora uma ora outra das virtudes requeridas à boa mulher, mas sobretudo oferece a possibilidade de compendiar, na rápida lista das obrigações que os pais lhe recordam no momento das núpcias, os múltiplos papéis da mulher no interior da família e de desenvolver para cada um deles, regras específicas de comportamento (VECCHIO, 1990, p. 143).

A exemplo de Sara, as mulheres deveriam honrar seus sogros como se fossem seus próprios pais prestando-lhes respeito e obediência irrestritas; amar seus maridos através de uma postura de submissão voluntária absoluta e de uma vida de fidelidade conjugal a eles, uma vez que a fidelidade sexual era a única garantia da paternidade, e em consequência, da legitimidade da prole; amparar suas famílias através do cuidado dos filhos e dos servos; governar bem suas casas, uma vez que a casa era considerada o espaço da presença e atuação feminina por excelência; e, viver vidas irrepreensíveis, sem nenhuma mancha na vida, na fama ou na consciência (VECCHIO, 1990, p.146-172).

O Renascimento (fins do séc. XIV a início do séc. XVII) foi um período histórico caracterizado pela ruptura entre o mundo medieval, estruturado com base em uma sociedade agrária, estamental, teocrática e fundiária, e o mundo moderno urbano, burguês e comercial. Este movimento marcou o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna no que diz respeito à política, religião, filosofia, ciência, arte, moral e toda a cultura em geral. Nele, “impõe-se um novo modo de pensar e agir bastante contrastante com o precedente: antes o centro das preocupações humanas era Deus; agora é o homem” (MONDIN, 2006, p. 9).
O desenvolvimento do comércio, das navegações, o contato com outros povos e culturas, o crescimento urbano, o aumento da produção artística e literária e a redescoberta e retomada dos princípios norteadores da cultura greco-romana foram marcas que caracterizaram esse período. Desse modo, a expressão Renascimento tornou-se “sinônimo da importância que passou a ser dada ao saber, à arte e à erudição” (COSTA, 2005, p. 28).
A expansão marítima, ou as grandes navegações, com a consequente descoberta de um caminho mais curto para a África e a Índia, e a descoberta do “novo mundo” possibilitou a ampliação da concepção de mundo dos europeus. O contato como novos povos e novas culturas exigiu a reformulação da cosmovisão europeia. A instalação de colônias na África, Ásia e América, ocasionou a expansão do comércio de novas mercadorias entre as metrópoles e as colônias, bem como entre os países europeus possibilitando o surgimento de um mercado mais amplo e com características mundiais. O comércio foi grandemente impulsionado por meio da exploração de metais preciosos e do tráfico de escravos para suprir a mão-de-obra nas colônias (DUSSEL, 1985, p. 166-170).
A expansão territorial e comercial possibilitou a acumulação de capitais pela burguesia comercial, elemento imprescindível para o processo de industrialização que a Europa experimentou nos séculos seguintes. Tal acúmulo de riquezas exigiu a reestruturação da sociedade. Paulatinamente, surgia uma nova estrutura estatal baseada na centralização da justiça, da força armada, e do sistema administrativo. Desse modo pode-se afirmar que:

As mudanças que se operavam nas formas de se produzir a riqueza só poderiam funcionar se ocorressem modificações na estruturação política. Assim, pouco a pouco vai se desenvolvendo uma estruturação estatal que tinha por base a centralização da justiça, com um novo sistema jurídico baseado no Direito Romano. Houve também a centralização da força armada, com a formação de um exército permanente, e a centralização administrativa, com um aparato burocrático ordenado hierarquicamente, com um sistema de cobrança de imposto que permitiu uma arrecadação constante para manter todo esse aparato jurídico-burocrático-militar sob um único comando. Nascia, dessa forma, o Estado moderno, que veio favorecer a expansão das atividades vinculadas ao desenvolvimento da produção têxtil, à mineração e à siderurgia, bem como ao comércio interno e externo (TOMAZI, 2000, p. 2).

Alguns resultados positivos das transformações geradas pelo Renascimento podem ser mencionados, como por exemplo, o surgimento de uma mentalidade renovadora, baseada no homem racional, que repudiou o misticismo e o conservadorismo próprios do feudalismo, o desenvolvimento do comércio e da navegação, o contato com outros povos e culturas, e a proliferação de obras de arte e de obras filosóficas na Europa (COSTA, 2005, p. 28).
Mesmo diante destes avanços, essa época foi marcada, também, por um período de grande turbulência social e política. Faltou unidade política e religiosa. Ocorreram grandes conflitos entre as nações, guerras intermináveis, inquisições e perseguições religiosas. Grandes genocídios foram promovidos na América e a prática da escravidão ressurgiu como instituição legal. Esses fatores deixaram impressões fortemente negativas na história do Ocidente (COSTA, 2005, p. 29).
O Renascimento mudou radicalmente a postura do homem ocidental diante da natureza e do conhecimento. A crise da Igreja enquanto instituição e o surgimento de seitas e novos credos despertaram no homem renascentista a crença no pensamento especulativo. O conhecimento deixou de ser revelado, como resultado de uma atividade de contemplação e fé, para voltar a ser o que era antes entre gregos e romanos, o resultado de uma bem conduzida atividade mental. Desse modo, “a definição de conhecimento deixa de ser religiosa para entrar num âmbito racional e científico. O teocentrismo é deixado de lado e entra em cena o antropocentrismo (o ser humano no centro do Universo)” (ROCHA, 2010, p. 85).

Infelizmente, o movimento renascentista com todas as suas descobertas, conquistas e mudanças na concepção da vida em sociedade não conseguiu avançar no processo de promover mudanças na esfera das relações de gênero. A figura masculina continuou ocupando o lugar central nos tratados produzidos nesta época. Em relação à constituição da família, manteve-se o padrão patriarcal tradicional de subordinação da mulher ao seu esposo. Neste período histórico, “a obrigação de a esposa manifestar ao marido reverência, afeto e sobretudo obediência não é contestada, nem sequer atenuada, quer pelos escritores religiosos quer pelos escritores laicos” (VECCHIO, 1990, p. 174).
A mulher continuou sendo tratada como uma pessoa inferior ao homem. Um exemplo desta visão androcêntrica estagnada a respeito da condição feminina pode ser encontrada nas últimas páginas de uma importante obra deste período conhecida como O Príncipe.
Nicolau Maquiavel (1469-1527), autor de O príncipe, escreveu sua obra entre os anos de 1513 e 1516. Seu propósito era tratar do problema do poder. Mais especificamente, de como conquistar Estados e mantê-los subjugados. Maquiavel utilizando-se de sua experiência de homem de Estado, após ser liberto do encarceramento que lhe sobreveio por intrigas políticas, resolveu compilar todo o seu conhecimento sobre o assunto nesta valiosíssima obra, a qual tem sido lida e servido de inspiração para chefes de Estado e homens de poder de todos os tempos desde então (MARTINS, 1996, p. 5-23).
Em O Príncipe, Maquiavel elenca e responde a uma série de questões, entre as quais, “o que é principado, de que espécies são, como eles se conquistam, como se mantêm, por que eles se perdem” (MAQUIAVEL, 1996, p. 141). Além disso, o autor debate sobre as condições pelas quais um monarca absoluto é capaz de fazer conquistas, reinar e manter seu poder. Maquiavel acredita que o poder depende das características pessoais do príncipe, das circunstâncias históricas e de fatos que ocorrem independentemente de sua vontade. Disserta a respeito das relações que o monarca deve manter com a nobreza, o clero, o povo e seu ministério. Mostra como deve agir o soberano para alcançar e preservar o poder, como manipular a vontade popular e usufruir seus poderes tornando o povo seu grande aliado. E, faz uma análise  clara das bases em que se assenta o poder político, a saber, a importância da constituição de um exército próprio, como recompensar os aliados, como destruir, na memória do povo, a imagem dos antigos líderes, dentre outras (MAQUIAVEL, 1996, p. 49-128).
Os últimos capítulos de O príncipe apontam o objetivo imediato de Maquiavel ao escrevê-lo, qual seja o de contribuir para a unificação e libertação da Itália, uma vez que os primeiros Estados modernos já começavam a aparecer pela Europa, enquanto que a Itália ainda se encontrava fragmentada e em conflitos (MAQUIÁVEL, 1996, p. 129-138).
No penúltimo capítulo de sua obra, o XXV, intitulado De quanto pode a fortuna nas coisas humanas e de que modo se deve resistir-lhe, Maquiavel aconselha ao Príncipe Lourenço a ser enérgico no processo de reestruturação da Itália e a não contar somente com a sorte. Para ilustrar com a maior clareza possível seu conselho ele faz uma analogia entre a sorte e a mulher. Esta comparação reflete, em parte, a visão da sociedade renascentista acerca da mulher. São deles estas palavras:
Estou convencido de que é melhor ser impetuoso do que circunspecto, porque a sorte é mulher e, para dominá-la, é preciso bater-lhe e contrariá-la. E é geralmente reconhecido que ela se deixa dominar mais por estes do que por aqueles que procedem friamente. A sorte, como mulher, é sempre amiga dos jovens, porque são menos circunspectos, mais ferozes e com maior audácia a dominam (MAQUIAVEL, 1996, p. 133-134).

A mulher, no período renascentista, não apenas continuou sendo tratada como uma pessoa inferior ao homem como sua situação piorou aos extremos. Foi na época do Renascimento que ocorreu o maior número de femicídios da história da humanidade. Neste período instaurou-se “o fenômeno generalizado em toda a Europa: a repressão sistemática do feminino. Estamos nos referindo aos quatro séculos de ‘caça às bruxas’” (MURARO, 1991, p. 13).
A Ilustração ou Iluminismo, período que sucedeu o Renascimento, foi um movimento político e intelectual que se desenvolveu na Europa, no século XVIII. Sua principal característica era a premissa do uso pleno da razão como condição para o progresso da civilização. Seu principal lema era: “sapere aude! ‘Tenha coragem de usar a própria razão’” (TILLICH, 2000, p. 284).

O movimento caracterizou-se principalmente pela veneração à ciência e pelas ênfases dadas ao empirismo, ao racionalismo, ao antitradicionalismo, e ao otimismo utopístico relacionado à confiança na capacidade da razão de eliminar todas as causas de infelicidade e de miséria em qualquer setor da vida humana e social (MONDIN, 2006, p. 178-180).
O Iluminismo deu um passo além no que dizia respeito à compreensão da vida em sociedade. Concebeu novas ideias de vida social e entendeu a coletividade como um organismo próprio. Começou a discernir aspectos e áreas da vida social com diferentes características e necessidades, a saber, a agricultura, a indústria, a cidade, o campo. O conceito de nação, como forma de organização política pela qual as populações estabelecem relações intersocietárias já estava bem cristalizado nessa época (COSTA, 2005, p. 4445).
Apesar de todos esses avanços no que concerne à nova maneira de se compreender a realidade social, as questões de gênero permaneceram praticamente intocáveis pelo homem que agora se considerava iluminado pela razão. Segundo Pinsky e Pedro (apud PORTO, 2012, p. 13-14):
A maioria dos filósofos e escritores reiterava as visões tradicionais sobre as mulheres, frequentemente, nas mesmas obras em que condenavam os efeitos dos limites da tradição sobre os homens [...] Frequentemente à custa de sua própria lógica, continuaram a reafirmar que as mulheres eram inferiores aos homens nas faculdades cruciais da razão e da ética e que deveriam, portanto, estar subordinadas a estes. A maior parte dos homens das Luzes ressaltou o ideal tradicional da mulher silenciosa, modesta, casta, subserviente e condenou as mulheres independentes e poderosas.

É fato conhecido que muitas mulheres tiveram participação direta em grandes revoluções como a americana e francesa que surgiram neste período, assumindo a responsabilidade por suas famílias e propriedades enquanto seus maridos iam para as frentes de batalha, como ocorreu, em especial, no caso da independência dos Estados Unidos, ou participando de manifestações públicas em busca de direitos sociais como ocorreu com as mulheres francesas. As revoluções americana e francesa deram lugar a um novo espaço de encontro coletivo fora daquele que tradicionalmente era reconhecido como esfera de atuação da mulher, a saber, sua casa.  Nas ruas ou nos clubes, criou-se um reencontro entre as mulheres, e a partir destes movimentos elas começaram a se ver como seres do mesmo sexo. Estes são sinais anunciadores de práticas feministas do século XIX e que, infelizmente, foram barrados e silenciados. Durante o Iluminismo e nos séculos posteriores, cada fenômeno revolucionário moderno “deixará as mulheres descerem à rua e abrir clubes, mas saberá também, sempre, fechar esses clubes e fazer regressar as mulheres ao lar” (FRAISSE e PERROT, 1991, p. 19).
Não obstante todo empenho demonstrado por elas através da participação ativa nos movimentos revolucionários que ocorreram na América e na França,
[...] as mulheres foram desapontadas em ambos os movimentos revolucionários que lhes reservaram, ao final, novamente, os mesmos papéis domésticos da boa mãe, que não deve trabalhar fora, nem imiscuir-se em assuntos políticos, reservando-se à função de velar pela formação moral e virtuosa dos filhos da nação (PORTO, 2012, p. 14).

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (5), proclamada em 26 de agosto de 1789, no ápice da Revolução Francesa, uma das grandes elaborações teóricas do período iluminista, foi considerado um dos primeiros documentos escritos com a finalidade de se estabelecer critérios válidos para o reconhecimento dos direitos humanos. Infelizmente, a cosmovisão patriarcal e antropocêntrica que caracterizou os períodos históricos anteriores permaneceu inalterada entre os iluminados.
(5) Este documento consta na íntegra no ANEXO A.

Os sujeitos aptos a usufruírem os direitos ali propostos são descritos no tema e no preâmbulo do referido documento:
Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral. Em razão disto, a Assembleia Nacional reconhece e declara, na presença e sob a égide do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão: [...] (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO, 1789).


O ser humano do sexo masculino, o homem, o cidadão é prioritariamente o sujeito de direitos desta declaração. As mulheres, mesmo tendo participado efetivamente no processo de instauração e consolidação da Revolução Francesa, nem sequer foram mencionadas neste documento tipicamente androcêntrico.
Algumas alternativas no sentido de se corrigir essa injustiça foram propostas durante e após a aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Uma delas ocorreu no mesmo ano da aprovação da referida declaração. Entre os pensadores iluministas que ousaram abraçar a causa da emancipação política feminina encontra-se Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat (1743-1794), mais conhecido como Nicolas de Condorcet ou Marquês de Condorcet. Em 1789 Condorcet publicou um ensaio com o título Sobre a admissão das mulheres aos direitos da cidadania. Esta produção é considerada o primeiro ensaio no mundo a respeito dos direitos políticos das mulheres. Nele Condorcet critica a tendência dos pensadores de sua época de excluir as mulheres dos direitos de cidadania. A partir das premissas de que só é possível excluir as mulheres dos direitos de cidadania se for provado que elas são inferiores aos homens ou que são incapazes de exercer esses direitos, Condorcet estrutura uma apologia baseada em fatos concretos e comprova que nenhuma destas premissas tem validade. Ele cita exemplos de várias mulheres que ocuparam funções de governo, como o caso da rainha Elizabeth da Inglaterra dentre outras, e de outras que desempenharam funções políticas importantes em diferentes Estados da Europa, para finalmente concluir que a exclusão das mulheres dos direitos de cidadania é um ato de tirania. Ele encerra seu ensaio lançando um desafio a seus leitores e opositores:
Eu agora solicito que os opositores sejam condescendentes comigo e refutem estas proposições por métodos outros que o da necessidade de agradar e o das declamações; acima de tudo, que eles me mostrem quaisquer diferenças naturais entre homens e mulheres que possam servir de modo legítimo como base para privá-las de um direito (CONDORCET, 1789).

Neste mesmo ensaio encontramos também, ainda que de modo incipiente, um conceito que só surgirá e se desenvolverá amplamente alguns séculos depois, na segunda metade do século XX, que é a análise das relações sociais através da categoria de gênero. Condorcet defende a ideia de que as relações de gênero que se manifestam através da desigualdade nos direitos e nos papéis sociais de homens e mulheres não são naturais e sim o resultado de convenções sociais. São dele as seguintes palavras:
Diz-se que a mulher, não obstante ser superior em alguns respeitos ao homem - mais gentil, mais sensível, menos sujeita aos vícios que procedem do egoísmo e da dureza de coração - não possui realmente o sentimento da justiça; ela prefere obedecer a seus sentimentos a obedecer à sua consciência. Esta observação é mais correta, mas nada prova; não é a natureza, é a educação, é a existência social que produz esta diferença. Nem uma nem outra habituou as mulheres à ideia do que é justo, mas só à ideia do que é “honnête”, ou respeitável. Excluídas dos negócios públicos, de todas aquelas coisas que são julgadas de acordo com rigorosas ideias de justiça, ou de acordo com as leis positivas, as coisas com as quais elas se ocupam ou que são afetadas por elas são precisamente aquelas que são reguladas por sentimentos naturais de honestidade (ou, melhor dizendo, por aquilo que é apropriado) e pelos sentimentos. É, então, injusto alegar, como desculpa para continuar recusando às mulheres o desfrute de todos os seus direitos naturais, motivos que só têm realidade porque às mulheres falta a experiência que vem do exercício destes direitos (CONDORCET, 1789).

Obviamente que o nascente mundo intelectual liberal burguês não viu com bons olhos a proposta de participação política do sexo feminino proposta por Condorcet. Por causa de sua postura crítica em relação às posições mais radicais do movimento revolucionário francês, Condorcet foi considerado traidor da revolução e um mandato de prisão foi expedido em seu nome. Alguns meses após a expedição do mandato ele foi preso e dias depois apareceu misteriosamente morto em sua cela.
Outra tentativa de luta pelos direitos de participação política das mulheres na sociedade francesa ocorreu dois anos após a aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Desta vez a protagonista da história foi uma mulher. Em 1791, Marie Gouze (1748-1793), que usava o pseudônimo Olimpe de Gouges para assinar seus panfletos e petições em diversas frentes de luta no período da Revolução Francesa, propôs à Assembleia Nacional da França um documento intitulado Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (Este documento consta na íntegra no ANEXO B),  onde a mulher aparecia como sujeito de direitos em condição de igualdade com o homem.  No preâmbulo deste documento Mães, filhas, irmãs, mulheres representantes da nação reivindicam constituir-se em uma assembleia nacional. Considerando que a ignorância, o menosprezo e a ofensa aos direitos da mulher são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção no governo, resolvem expor em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados da mulher. Assim, que esta declaração possa lembrar sempre, a todos os membros do corpo social seus direitos e seus deveres; que, para gozar de confiança, ao ser comparado com o fim de toda e qualquer instituição política, os atos de poder de homens e de mulheres devem ser inteiramente respeitados; e, que, para serem fundamentadas, doravante, em princípios simples e incontestáveis, as reivindicações das cidadãs devem sempre respeitar a constituição, os bons costumes e o bem estar geral. Em consequência, o sexo que é superior em beleza, como em coragem, em meio aos sofrimentos maternais, reconhece e declara, em presença, e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos da mulher e da cidadã: Artigo 1º: A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. [...] (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER E DA CIDADÃ, 1791 – Itálico nosso).   Por ter proposto a possibilidade de uma relação igualitária entre homens e mulheres baseada no fato de que a diferença de sexo não mais deveria ser considerada fator relevante para justificar a exclusão das mulheres do poder político e do livre exercício da cidadania, Gouge, por causa de sua proposta ousada, foi considerada contra revolucionária e denunciada como uma mulher “desnaturada”, o que lhe custou, literalmente, o pescoço. No ano de 1793, no bojo da Revolução Francesa, ela foi guilhotinada (FELÍCIO, 2011, p. 14).
O grande número de revoluções políticas que, desencadeadas pela Revolução Francesa de 1789, surgiu ao longo do século XIX, constituiu a base para as mudanças que se cristalizariam no decorrer do século XX. Esta revolução liberal burguesa derrotou, a um só tempo, as críticas teóricas dos pensadores socialistas e as expressivas lutas e resistências do operariado da época e consolidou o Estado Liberal Capitalista no Ocidente. Além das revoluções políticas, outras forças sociais contribuíram para a consolidação do capitalismo, dentre as quais podemos listar, a Revolução Industrial e o processo de urbanização como consequência direta da industrialização e o desenvolvimento científico (RITZER, 1997, p. 7-10). Estas mudanças influenciaram definitivamente e transformaram o dia-a-dia de homens e mulheres nas sociedades ocidentais e contribuíram efetivamente para a concretização do processo de reestruturação de seus respectivos papéis sociais no transcurso do século XX.

1.1.2 O Processo de Formação da Cosmovisão Patriarcal e Androcêntrica do Povo Brasileiro

A cosmovisão patriarcal e androcêntrica que caracterizou o povo europeu foi implantada no território brasileiro desde sua colonização e nele permaneceu firmemente arraigada até meados do século XIX. Neste período histórico, “[...] a família patriarcal foi a instituição mais importante da ordem social brasileira. A autoridade do homem se impunha sobre todas as formas de organização social” (SOUZA e LEMOS, 2009, p. 22).
Na época do Brasil Colonial, por exemplo, o poder do homem sobre a mulher era tão absoluto que ele tinha autorização legal para usar de violência, se preciso fosse, para manter sua esposa submissa a ele. Neste período histórico, “era permitido aos maridos ‘emendar’ suas companheiras pelo uso da chibata” (GIORDANI, 2006, p. 68).
Mesmo diante dessa triste realidade, algumas mulheres conseguiram se destacar no Brasil colonial contrariando as convenções sociais de sua época e deixaram marcas positivas na história da nossa pátria. A princesa Isabel foi um desses exemplos. Filha de D. Pedro II e candidata natural ao trono do Brasil, Isabel recebeu uma refinada educação e teve a oportunidade de substituir seu pai em três diferentes momentos da história da nação brasileira. No último período em que Isabel assumiu a regência da nação, devido a graves problemas de saúde que seu pai enfrentou e que o levaram a ausentar-se do Brasil, foi promulgada em 13 de maio de 1888 a famosa Lei Áurea que extinguiu definitivamente a escravidão no Brasil (ALMEIDA, 2014, p. 108-116).
Apesar do carisma e das muitas habilidades na área política e administrativa demonstradas pela princesa Isabel, o fato de ela ser uma mulher pesou negativamente na ascensão ao trono (ALMEIDA, 2014, p. 118). Mesmo tendo um bom número de simpatizantes de sua causa, a grande maioria da sociedade colonial era fortemente dominada pela visão patriarcal e androcêntrica. A doença de D. Pedro II e a possibilidade de Isabel assumir efetivamente o trono da nação brasileira levou boa parte dos cidadãos influentes da sociedade a promover um motim e dar um golpe de Estado que derrubou o regime monárquico e proclamou, em 15 de novembro de 1889, a República. Isabel foi enviada com sua família para o exílio onde morreu. Em relação à sua condição de herdeira do trono e a seus respectivos períodos de governo nos momentos de ausência de seu pai:
Tinham-na tolerado em sua regência provisória, mas não a queriam no trono, devido ao preconceito presente nos fins do Império que se opunha ao envolvimento da mulher nos manejos políticos e mais ainda na administração propriamente dita de negócios do Estado. Mesmo os partidários da monarquia se tornaram descrentes ante a perspectiva de vê-la entregue, num futuro próximo, às mãos de uma mulher. Para os republicanos o melhor a fazer era abortar o terceiro reinado antes de sua concretização; assim, em 15 de novembro de 1889, foi proclamada a República, e a princesa Isabel partiu com a família para o exílio na Europa (ALMEIDA, 2014, p. 119).

Inúmeros exemplos da configuração social patriarcal que constituiu o povo brasileiro no período colonial, e posteriormente no período republicano, podem ser extraídos de dados da historiografia tradicional. De acordo com esta vertente,
[...] os direitos da mulher no Brasil do século XIX estavam circunscritos ao espaço doméstico e sua voz, quando concedida, limitava-se a comandar os empregados e controlar os filhos. Educada para as prendas do lar, a mulher devia seguir o destino definido pela sociedade, que lhe impingia a reclusão, a dedicação à família, enfim, a submissão, primeiro ao pai, depois ao marido. A expectativa era que ela fosse dócil, recatada e obediente. Fugir desse padrão de conduta significava ser olhada com desconfiança, enfrentar reprovações ou ainda receber algum tipo de sanção [...] (SOUZA, 2007, p. 13).    Os registros historiográficos tradicionais apresentam o estereótipo ideal de mulher de acordo com a concepção de um modelo patriarcal de família, que por muito tempo serviu de célula mater para a nossa sociedade. Nesta perspectiva, a mulher deveria viver em função do homem. Enquanto filha deveria servir aos seus pais e irmãos. Depois de casada deveria submeter-se de modo absoluto ao seu marido conformando-se com a bendita vocação materna. A esfera de atuação feminina estaria restrita, basicamente, ao recinto do lar.
Entre o ideal de mulher objetivado pela sociedade e a vida real havia um grande abismo. Nem todas as mulheres tinham condições de dedicar-se exclusivamente à vida doméstica. As mulheres mais humildes, ao contrário, precisavam trabalhar para sustentar suas famílias. Desse modo, elas acabavam adentrando ao espaço público reservado aos homens. Em regra geral, as mulheres “não podiam sair desacompanhadas e sua passagem pelos espaços públicos só era bem aceita se relacionada às atividades da Igreja, como missas, novenas e procissões, o que para as jovens daquela época era uma forma de lazer” (FOLLADOR, 2009, p. 8).
Se a mulher cumprisse fielmente todos os seus deveres sociais e matrimoniais ela era reconhecida como uma mulher honrada. Quem fugisse deste padrão moral estabelecido pela sociedade seria classificada como mulher desonrada ou mulher sem honra. Era considerada uma mulher desonrada aquela que praticasse relações sexuais ilícitas, que perdesse a virgindade antes do casamento ou que possuísse um comportamento social considerado inadequado ou desajustado. Estas mulheres eram, em geral, odiadas pela sociedade, pois maculavam a honra de seus familiares ou de seus maridos. Daí, a necessidade de serem punidas por seus maridos ou familiares como uma espécie de resgate à honra manchada (FOLLADOR, 2009, p. 9-10).
As mulheres denominadas sem honra eram aquelas, que na maior parte dos casos, estavam vinculadas direta ou indiretamente à prática da prostituição, as que eram escravas, negras alforriadas ou mestiças ou as mulheres brancas pobres que precisavam trabalhar para sustentar suas famílias. A prostituição tornou-se uma prática tolerada pelas grandes famílias e pela Igreja haja vista que através dela a sociedade encontrou um mecanismo de proteção e preservação da sexualidade das virgens de boa família. Além disso, as meretrizes eram responsáveis pela iniciação sexual dos varões das famílias abastadas. A prostituição tornou-se também, em muitos casos, o único meio de sobrevivência e sustento da família para algumas mulheres pobres (FOLLADOR, 2009, p. 10).
O sistema jurídico brasileiro que regulamentava os direitos civis de seus cidadãos era, em primeira instância, uma extensão do regime de Portugal, conhecido como Ordenações Filipinas (As Ordenações Filipinas eram constituídas por um conjunto de leis em vigor para Portugal e suas colônias.  Elas serviram para normatizar a sociedade brasileira durante o período colonial - CONCEIÇÃO, 2009, p. 60),  que vigorou no Brasil até 1890. O primeiro Código Civil Brasileiro só entrou em vigor a partir de 1917. No que dizia respeito ao casamento, o Código Civil de Portugal defendia a posição de supremacia e autoridade do homem no lar.
No que se refere ao casamento, as Ordenações Filipinas (Liv. IV, tít. XCV) esclarecem que o marido é o cabeça do casal, podendo a mulher, somente após a sua morte, ocupar esta posição: a mulher só adquire status de ser independente com a viuvez. Ao marido, devia total submissão. Esta ideia é reforçada pelo Decreto-lei nº 181, de 24 de janeiro de 1890 (art. 94), que previa a mulher como sucessora do marido morto: “Todavia, se o cônjuge falecido for o marido, e a mulher não for binuda, esta lhe sucederá nos seus direitos sobre a pessoa e os bens dos filhos menores, enquanto se conservar viúva.” Voltando a casar-se, perdia o direito, o que se estendeu ao Código Civil (VASCONCELLOS, s/d, p. 1-2).

Lafayete Rodrigues Pereira (1834-1917) foi um grande jurista brasileiro de fins do século XIX e início do século XX e autor de várias obras dentre as quais se destacaram: Direito de Família e Direito das Coisas que se tornaram referências clássicas para o estudo de  Direito no Brasil para várias gerações de estudantes. Pereira, ao comentar sobre a autoridade do homem na família disse o seguinte: Ao marido, em virtude do poder marital, compete:  1 – O direito de exigir obediência da mulher, a qual é obrigada a moldar suas ações pela vontade dele em tudo o que for honesto e justo;  2 – O direito de escolher e fixar domicílio conjugal, no qual a mulher deve acompanhá-lo;  3 – O direito de representar e defender a mulher nos atos judiciais e extrajudiciais; 4 – O direito de administrar os bens do casal, podendo dispor dos móveis livremente, dos imóveis com as restrições da lei (PEREIRA apud VASCONCELLOS, s/d, p. 2).

A prática do adultério era criminalizada pela legislação portuguesa e sentenciada com a pena capital. De acordo com as normas explicitadas nas Ordenações Filipinas, o crime de adultério deveria ser punido da seguinte forma:
Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como ao adúltero, salvo se o marido for peão, e o adúltero for fidalgo, ou nosso Desembargador, ou pessoa de maior qualidade. E não somente poderá o marido matar sua mulher e o adúltero, que achar com ela em adultério, mas ainda os pode licitamente matar, sendo certo que lhe cometeram adultério (CONCEIÇÃO, 2009, p. 60).

A referida Lei portuguesa ampara o homem casado. Apesar de fazer diferença entre o “peão” e o “fidalgo”, entre o pobre e aqueles que possuem alguma condição social, o fato é que a norma legitima, considera como lícito, o assassinato de uma mulher adúltera. É interessante notar que a Lei não prevê nenhuma sanção para o homem casado que praticar o adultério, a menos que ele seja o adúltero nesta relação, ou seja, que ele mantenha relações sexuais com a mulher de algum cidadão respeitável da sociedade, e que, como agravante, seja pobre e sem nenhuma condição social. A norma estabelecia com muita clareza que a questão de se preservar intacta a moral social era uma obrigação tipicamente feminina.
Neste contexto, surge uma perspectiva diferente do significado de adultério para homens e para mulheres. Em relação à mulher, a pena de morte era encarada de modo natural como uma merecida punição pela prática do adultério. No caso do homem, ele “não se sujeitava a penas maiores por experiências extramatrimoniais com mulheres solteiras ou com escravas e prostitutas” (GIORDANI, 2006, p. 66).
No Brasil esta punição foi legalmente atenuada quando o Código Criminal do Império do Brazil foi sancionado em 16 de dezembro de 1830. Os artigos que tratavam a questão do adultério rezavam o seguinte:  Art. 250. A mulher casada, que commetter adulterio, será punida com a pena de prisão com trabalho por um a tres annos. A mesma pena se imporá neste caso ao adultero. Art. 251. O homem casado, que tiver concubina, teúda, e manteúda, será punido com as penas do artigo antecedente. Art. 252. A accusação deste crime não será permitida à pessoa, que não seja marido, ou mulher; e estes mesmos não terão direito de accusar, se em algum tempo tiverem consentido no adulterio. Art. 253. A accusação por adulterio deverá ser intentada conjunctamente contra a mulher, e o homem, com quem ella tiver commettido o crime, se fôr vivo; e um não poderá ser condemnado sem o outro (CODIGO CRIMINAL DO IMPERIO DO BRAZIL, 1830).

Uma vez sancionada a referida Lei, a pena de morte foi substituída, pelo menos na esfera legal, pela prisão temporária. Apesar das atenuantes que o Código Criminal brasileiro apresentou, a mulher continuou sendo a grande prejudicada. Para a mulher casada bastava um deslize para que pudesse ser
considerada adúltera. Já o homem casado só era adúltero se assumisse uma relação de concubinato que fosse reconhecida publicamente.
Pereira concordava com o rigor da Lei em relação às mulheres quando se tratava de adultério ou de crime contra a honra do homem, da família e da sociedade. Na concepção dele, concepção essa que era um reflexo do pensamento vigente em sua época,
É inegável contudo que a infração de um tal dever por parte da mulher reveste de um caráter mais grave; 1º, porque ela, em razão do seu sexo e das ideias recebidas, é obrigada a maior recato e pois a sua falta fere mais pronunciadamente a moral e os costumes públicos; 2º, porque a sua infidelidade pode dar lugar ao nascimento dos filhos adúlteros e dest’arte, introduzir no seio da família elementos de perpétua luta e desordem. [...] É por isso que o nosso Código Crim., à imitação das legislações estrangeiras, estabelece para o adultério da mulher pena mais severa do que para o marido (PEREIRA apud VASCONCELLOS, s/d, p. 3).

Uma vez que legalmente as mulheres foram consideradas propriedade de seus maridos e que a prática do adultério, principalmente quando se tratava das mulheres, era caracterizada na condição de um crime contra a família e contra a boa ordem social, não nos espanta o fato de que, durante o século XIX e boa parte do século XX, muitos maridos assassinaram brutalmente suas esposas sob a justificativa de lavar com sangue a honra ferida sem que nenhuma punição legal fosse aplicada a eles.
Estes assassinatos foram configurados historicamente como delitos passionais e no processo de julgamento dos criminosos, dois critérios eram sempre levados em consideração, a fim de que os tais fossem distinguidos dos outros criminosos comuns, a saber, a qualidade dos motivos que o levaram a cometer o delito e a personalidade do autor do mesmo. Se o motivo que levou o homem a cometer o crime foi relevante para a manutenção da ordem moral da sociedade e se ele agiu em defesa de princípios como família e honra, “a paixão que o impulsionava classificava-se como social e, portanto, era possível a atenuação da pena, diminuindo o tempo de reclusão ou levando à absolvição do criminoso” (CONCEIÇÃO, 2009, p. 72), o que geralmente ocorria.
Não há dúvida de que a realidade social brasileira, em particular no diz respeito aos papéis destinados aos homens e às mulheres no contexto da família tradicional, sofreu o impacto das transformações sociais que ocorreram na Europa e nos Estados Unidos a partir do século XIX, transformações essas que foram encabeçadas por vários setores da sociedade, dentre os quais podemos citar os movimentos feministas (BICALHO, 2003, p. 40-42).
A primeira onda feminista no Brasil foi identificada a partir da segunda metade do século XIX e se caracterizou pelo surgimento do movimento sufragista que, dentre outras coisas, reuniu reivindicações específicas e gerais da sociedade brasileira tais como o direito à educação para as mulheres e ações a favor da abolição da escravatura negra e da defesa de ideais republicanos (TELES, 2003, p. 54-55).
Todavia, essas influências só se tornaram mais perceptíveis no Brasil em meados do século XX. Nas primeiras décadas do referido século, as mulheres conquistaram direitos que mudaram significativamente suas vidas e seus papéis sociais. Um marco importante nesse processo de transformação foi a luta pelo voto feminino, conquistado em 1932, estendido a todas as mulheres em 1934, e obrigatório para elas somente a partir de 1946. Outra importante conquista obtida pelas mulheres neste período foi a inclusão de seus direitos e deveres na pauta dos movimentos trabalhistas o que fez com que a família tradicional experimentasse um processo de reconfiguração (SOUZA e LEMOS, 2009, p. 23-24).
Nesse período encontramos mulheres que começam a se destacar na esfera pública. No processo de elaboração da Constituição de 1934, duas mulheres integraram a comissão: Carlota Pereira, primeira deputada federal brasileira, eleita pelo Estado de São Paulo e Almerinda Gama, deputada constituinte classista. Nove mulheres foram eleitas nas eleições para as assembleias constituintes estaduais neste mesmo ano. Em 1936 Bertha Lutz, suplente a deputada federal, assume uma vaga no Parlamento (TELES, 2003, p. 55).
A mulher que em épocas anteriores estava praticamente confinada ao recinto doméstico, começava agora a ocupar efetivamente um lugar no espaço público outrora reservado exclusivamente para os homens. Estas mudanças geraram tensões sociais significativas. O Estado, a Igreja e a própria imprensa acusavam as mulheres de serem as grandes responsáveis pela crise e
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dissolução da família brasileira e lutaram tenazmente para mantê-la reclusas em suas próprias casas (SOUZA e LEMOS, 2009, p. 24-27).
Contudo, as pressões sociais não foram fortes o suficiente para impedir as transformações socioculturais que iam se instaurando na sociedade brasileira e que interferiram de modo significativo na constituição da família patriarcal e nas relações de gênero até então estabelecidas. Segundo Souza, estas transformações,
[...] foram fundamentais para o redesenho da esfera doméstica, incluindo-se aí o redesenho das relações intrafamiliares. As transformações advindas do processo de industrialização e urbanização repercutiram definitivamente sobre a vida cotidiana dos homens e mulheres. A transformação da estrutura produtiva e a crescente participação feminina no mercado de trabalho, o acesso progressivo das mulheres à educação formal, a luta feminista e a conquista de direitos políticos, o acesso a métodos contraceptivos que gerou uma significativa queda nas taxas de fecundidade dentre outros, tem possibilitado importantes mudanças também na dinâmica da casa, favorecendo uma revisão do sistema de autoridade no âmbito doméstico (SOUZA e LEMOS, 2009, p. 22).

Apesar de moroso, o processo de transformação sociocultural que a sociedade brasileira sofreu, e ainda sofre, consolidou conquistas importantes no que diz respeito ao reconhecimento do importante papel que a mulher ocupa na sociedade e avançou significativamente na consolidação de direitos humanos que, pelo menos teoricamente, se aplicavam a elas, como consta por exemplo, nos dois primeiros artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos que preveem a igualdade das pessoas simplesmente pelo fato de serem humanas e não por sua condição social, econômica, religiosa ou sexual. O direito pleno das mulheres à vida, à liberdade, à igualdade etc., preconizado pela referida Declaração em 1948 começou a se tornar realidade há bem pouco tempo. Duarte e Castro aludiram a estas importantes conquistas:
Em 1° de novembro de 2003, entrou em vigor o novo Código Civil. O antigo, que vigorava desde 1916, dava ao homem o direito de devolver a esposa se descobrisse depois do casamento que ela não era mais virgem. A alegação tinha nome: erro essencial de pessoa. No ano de 1917, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de Maurício Lacerda que estipulava as normas para o trabalho feminino. Em 23 artigos, ficou estabelecido que as mulheres não podiam ser admitidas em atividades ofensivas ao pudor ou à moral, trabalhos noturnos, subterrâneos e manipulação de inflamáveis, entre outras proibições. O voto feminino só foi instituído em 1932, quando o presidente Getúlio Vargas publicou o novo Código Eleitoral. O documento previa o voto secreto e o direito das mulheres elegerem e
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também serem eleitas para os cargos políticos. Mas foi a Constituição Federal de 1988 que instituiu plena igualdade entre os sexos e transformou os direitos da mulher em princípio inabalável, proibindo qualquer forma de discriminação (DUARTE e CASTRO apud PAULA, 2012, p. 33-34).

Como se pode notar, abriu-se um novo caminho no sentido de se promover mudanças nas relações de gênero, caminho esse que parece não ter retorno. Em suma, as mulheres historicamente têm sido alvo da violência praticada por homens, por causa de uma concepção equivocada da superioridade do sexo masculino em relação ao feminino, concepção essa que tem como consequência a coisificação da mulher, ou seja, elas passam a ser consideradas como uma espécie de propriedade particular dos homens, meros objetos que podem ser usados e descartados ao seu bel prazer.
Da violência psicológica a mais embrutecida violência física contra as mulheres, existe um facilitador: o papel social esperado, portanto imposto, reforçado pela cultura patriarcal que desvela-nos relações de poder e dominação muitas vezes violentas entre os sexos, e justificadas pela inferioridade hierarquizada da mulher; por sua subordinação (VILHENA, 2011, p. 25-26).

Toda essa violência e a ideologia que subjaz a esta prática, seja ela aparente ou camuflada, fundamentam-se numa concepção milenar de que a superioridade do homem, em comparação com a mulher, se dá de modo natural, quando não, pela vontade divina.
Contudo, o reconhecimento de que os papéis sociais, dentre os quais se inclui as relações de gênero no âmbito familiar, são construtos humanos e não realidades naturalmente ou divinamente estabelecidas, contribuiu efetivamente para a possibilidade de uma nova abordagem do tema que trata acerca da violência contra mulher.

1.2 O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM CONSTRUTO SÓCIO-RELIGIOSO

Para se compreender com maior clareza o fenômeno da violência contra a mulher presente na sociedade brasileira, prática esta que reflete um tipo específico de relações sociais estabelecidas entre homens e mulheres, é  necessário enfatizar a importância da religião no processo de construção das relações que se estabelecem na convivência em sociedade. Os grandes clássicos da Sociologia, Marx, Durkheim e Weber, na busca de compreender os fatores que atuavam no processo de construção das relações sociais, reconheceram, a partir de diferentes perspectivas, a importância do fato religioso nesse processo, daí, considerarem a questão da religião como algo inseparável do objeto de estudo da ciência social (TEIXEIRA e MENEZES, 2003, p. 8). A perspectiva sociológica de Durkheim defende ser a religião um objeto legítimo de estudo da Sociologia, como instrumento que possibilita uma melhor compreensão do processo de estruturação da sociedade. Durkheim reconheceu a religião como uma coisa, um fato social, e a partir daí, procurou compreender sua natureza e função fundamentando sua abordagem no estudo do fenômeno religioso em sociedades primitivas. Sua escolha a favor das religiões primitivas fundamentou-se no fato de que elas não permitem apenas depreender os elementos constitutivos da religião, como também apresentam a grande vantagem de facilitar sua explicação. Como nelas os fatos são simples, as relações entre os fatos são também transparentes (DURKHEIM, 1989, p. 29). Segundo ele,
[...] é preciso começar por remontar até a sua forma mais primitiva e mais simples, procurar perceber os caracteres pelos quais ela se define nesse período da sua existência, depois fazer ver como, pouco a pouco, ela se desenvolveu e se tornou complexa, como veio a ser o que é no momento considerado (DURKHEIM, 1989, p. 31).

Uma vez que Durkheim reconhece a religião como sendo coisa iminentemente social, ele assume que “as representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas” (DURKHEIM, 1989, p. 29). Estas representações coletivas que servem como características e que dão expressão a uma dada sociedade são:
[...] o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas também no tempo; Para produzi-las, uma multidão de espíritos diversos associaram, misturaram, combinaram suas ideias e seus sentimentos; Longas séries de gerações acumularam aí a sua experiência e o seu saber. Uma intelectualidade infinitamente mais rica e complexa que a do indivíduo aí está como que concentrada (DURKHEIM, 1989, p. 45).

Os conceitos de religião na condição de fato social, de sobrenatural e divindade, de crenças e ritos, de sagrado e profano, de magia e religião, de magos e sacerdotes, e de igreja que foram abordados por Durkheim (1989) serviram de alicerce para análises posteriores sobre a natureza da religião e suas funções sociais. Estes conceitos foram revisitados, reinterpretados e ampliados por outros teóricos que vieram depois dele.

1.2.1 A Natureza da Religião e sua Função Social

A Fenomenologia da Religião, em sua forma clássica, é uma vertente da ciência que desde fins do século XIX tem focado sua atenção na experiência religiosa, buscando compreendê-la como um fenômeno da natureza humana. Ela parte do axioma antropológico de que o ser humano é equipado com uma faculdade específica a qual o predispõe para a sensação da presença do sagrado, faculdade esta denominada, “sensus numinis” (USARSKI, 2006, p. 34).
Analisar a natureza da religião implica necessariamente numa abordagem: da experiência fundante que a originou, a saber, o encontro do ser humano com o sagrado e de suas implicações (OTTO, 1985; ELIADE, 2001); dos elementos básicos que a constituíram que são o mito, o símbolo e o rito (ELIADE, 2004; CROATTO, 2001; CAZENEUVE, s/d); e do processo de institucionalização da mesma que ocorre a partir da divisão social do trabalho religioso e do surgimento do campo religioso e de uma literatura especializada (O’DEA, 1969; WEBER, 1991; BOURDIEU, 1998). A gênese do fenômeno religioso, portanto, está ligada a uma experiência profunda entre o ser humano e o sagrado e sua institucionalização decorre da necessidade humana de explicar de modo inteligível essa experiência.
A função social da religião tem sido alvo de diferentes abordagens em diversos campos da ciência. Entre as múltiplas funções que a religião desempenha na sociedade, ela fornece justificação para a existência humana “na forma tal como existimos em situações socialmente determinadas (isto é,
conforme os atributos do grupo, gênero ou classe a que pertence cada indivíduo)” (OLIVEIRA, 2003, p. 180).
A religião ocupa um importante papel na estruturação da ordem social através do processo de legitimação, que ‘explica’ a ordem institucional e valida cognoscitivamente seus significados objetivados. A legitimação “justifica a ordem institucional dando dignidade normativa a seus imperativos práticos” (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 128), Desse modo, religião na condição de construto social,
[...] permite a legitimação de todas as propriedades características de um estilo de vida singular, propriedades arbitrárias que se encontram objetivamente associadas a este grupo ou classe na medida em que ele ocupa uma posição determinada na estrutura social (BOURDIEU, 1998, p. 46).

A função social da religião pode ser abordada em diversas perspectivas. Dentre elas, a religião pode desempenhar o papel social de: a) legitimadora e/ou questionadora dos status sócio-político-econômico nas relações de classes (BOURDIEU, 1998; LÖWY, 2000); b) promotora de salvação num mundo dominado pelo conceito da razão moderna (DERRIDA, 2000); c) promotora de saúde e bem-estar (TERRIN, 1998); d) elemento fornecedor de sentido, fator de coesão e de nomia social (BERGER, 2004).
O processo de sacralização da cultura e de estruturação, normatização e legitimação da vida e das relações estabelecidas em sociedade é uma das importantes funções que a religião desempenha na sociedade em todos os tempos. Nesta vertente, a religião tornou-se um elemento fornecedor de sentido e fator de coesão e nomia no contexto social. Um dos mais importantes sistematizadores desta ideia é o sociólogo austroamericano Peter Berger (SANTOS, 2013, p. 151-164).
Os elementos fundamentais de sua teoria encontram-se na obra O Dossel Sagrado: Elementos para uma Teoria Sociológica da Religião, publicada em 1967. O livro foi estruturado em duas partes. Na primeira, Berger apresenta os elementos sistemáticos que relacionam a religião com a construção e manutenção do mundo e descreve os mecanismos sociais utilizados para explicar e superar a anomia no contexto social, e os efeitos alienantes da religião nesse processo. A segunda parte relaciona os elementos  históricos ligados ao processo de secularização do mundo moderno e as implicações desse evento histórico para a plausibilidade da religião na sociedade ocidental no que diz respeito à sua função de instrumento de legitimação social da cultura do Ocidente.
Os elementos sistemáticos que constituem a teoria sociológica da religião de Peter Berger são apresentados na parte inicial de sua obra. No primeiro capítulo, o autor estabelece a premissa de que a sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo onde a religião ocupa um lugar de destaque. A partir dessa assertiva, ele propõe estabelecer a relação entre a religião e a construção humana do mundo. Para alcançar tal intento, Berger descreve a relação dialética existente entre dois pressupostos: a sociedade como um produto do homem e, ao mesmo tempo, o homem como um produto da sociedade ( Esse pressuposto bergeriano foi bem desenvolvido, em particular nos capítulos 4 a 6, na obra Perspectivas sociológicas: uma visão humanística (BERGER, 1973, p. 78-166).
 Esse processo dialético, que inicialmente aparenta ser contraditório, consiste de três momentos, ou passos, e é explicado pelo autor nas seguintes palavras: “É através da exteriorização que a sociedade é um produto humano. É através da objetivação que a sociedade se torna uma realidade sui generis. É através da interiorização que o homem é um produto da sociedade” (BERGER, 2004, p. 16).
Segundo Berger, o ser humano, diferente de outros animais, nasce num mundo aberto ( Ao abordar a diferença substancial entre o reino dos animais e o mundo dos humanos, Berger afirma que “[...], todos os animais não humanos, enquanto espécies e enquanto indivíduos, vivem em mundos fechados, cujas estruturas são predeterminadas pelo equipamento biológico das diversas espécies animais. Em contraste, a relação do humano com o seu ambiente caracteriza-se pela abertura para o mundo” (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 70),  que deve ser modelado pela própria atividade do homem. Desse modo, pontua ele, “a existência humana é um continuo ‘pôr-se em equilíbrio’ do homem com seu corpo, do homem com seu mundo. É nesse processo que o homem produz o mundo” (BERGER, 2004, p. 18).
A essa construção humana do mundo, Berger denominou cultura. A sociedade ocupa, em sua perspectiva, “uma posição privilegiada entre as formações culturais do homem” (BERGER, 2004, p. 20), e por isso, ele descreve a dinâmica da objetivação da sociedade, e da socialização do ser humano como algo que “nunca pode ser completada, que deve ser um processo contínuo através de toda a existência do indivíduo” (BERGER, 2004, p. 29).
A religião entra na discussão quando o nomos social aparece como expressão óbvia da natureza das coisas, entendido cosmologicamente ou antropologicamente, como derivado de fontes mais poderosas do que os esforços históricos dos seres humanos. Nesse caso, o discurso religioso enquanto empreendimento humano é reconhecido como sendo um instrumento de interpretação e sacralização da realidade, ou seja, “a cosmificação feita de maneira sagrada” (BERGER, 2004, p. 38).
A participação da religião no processo de estruturação da sociedade continua sendo abordada nos capítulos que se seguem. Berger descreve a fugacidade dos mundos socialmente construídos pelos homens e as constantes ameaças que tais mundos sofrem. Ele menciona a importância dos processos fundamentais da socialização e controle social, que surgem como mecanismos que servem para atenuar essas ameaças, e discorre sobre o valor do processo da legitimação da realidade social. O autor define legitimação como sendo “o ‘saber’ socialmente objetivado que serve para explicar e justificar a ordem social [e para] para escorar o oscilante edifício da ordem social” (BERGER, 2004, p. 42). A seguir, Berger descreve como ocorre processo de legitimação social e menciona o papel que a religião desempenha nesse empreendimento. De acordo com o autor,
A parte historicamente decisiva da religião no processo de legitimação é explicável em termos da capacidade única da religião de ‘situar’ os fenômenos humanos em um quadro cósmico de referência. [...] A legitimidade religiosa pretende relacionar a realidade humanamente definida com a realidade última, universal e sagrada. [...] os nomoi humanamente construídos ganham um status cósmico (BERGER, 2004, p. 48-49).

Berger defende ainda, que as legitimações religiosas, originárias da atividade humana, uma vez cristalizadas em complexos de significados que se tornam parte de uma tradição religiosa, podem tornar-se num instrumento de legitimação e de justificação de uma determinada situação ou contexto social. Quando este fenômeno ocorre, o discurso religioso atua como um mecanismo de alienação social.

O autor define alienação como sendo o “processo pelo qual a relação dialética entre o indivíduo e seu mundo é perdida para a consciência. O indivíduo esquece que este mundo foi e continua a ser coproduzido por ele” (BERGER, 2004, p. 97). Neste caso, inverte-se na consciência a verdadeira relação entre o homem e seu mundo, “o agente torna-se apenas aquele sobre o qual se age. O produtor é apreendido somente como produto” (BERGER, 2004, p. 98).
Berger afirma que a religião tem sido um dos mais eficientes baluartes contra a anomia ao longo da história humana, e que por isso, ela é propensa a ser instrumento de alienação, talvez o mais poderoso que a humanidade já conheceu. Todavia, a mesma religião que tem servido como instrumento alienante, pode tornar-se um meio de desalienação religiosamente legitimada. Segundo ele, “a religião aparece na história quer como força que sustenta, quer como força que abala o mundo. Nessas duas manifestações, ela tem sido tanto alienante quanto desalienante” (BERGER, 2004, p. 112).
Os movimentos vinculados à leitura feminista da Bíblia que surgiram nas últimas décadas do século XX, como apontaremos a seguir, mostraram a função desalienante que o discurso religioso pode assumir no que diz respeito ao resgate do papel feminino na religião e na sociedade e no consequente combate a todo tipo de violência praticado contra a mulher.

1.2.2 A Religião Como Instrumento de Resistência à Prática da Violência Contra a Mulher

Os movimentos feministas que surgiram em fins do século XIX e no transcurso do século XX foram muito importantes para a mudança de conceito no que diz respeito à constituição da família e sua dinâmica interna de relacionamentos. Estes movimentos começaram a levantar sérios questionamentos acerca da validade da ideologia que por milênios defendeu a superioridade do homem em relação à mulher e que geralmente era justificada e fundamentada nas relações de gênero, ou seja, na concepção equivocada de que o homem era, por natureza ou por vontade divina, superior à mulher.

Todavia, foi na América do Norte, a partir dos movimentos feministas da década de 1960, que em primeira instância lutaram por direitos e proteção social, e na década de 1970, com a contribuição de diversas áreas do saber, tais como, a Antropologia e a História Social, que o tema mulher passou a ocupar um lugar de destaque como objeto de estudo e de produção acadêmica para historiadores e diferentes pensadores. Diante de uma sociedade que passava por constantes transformações, e “aliada às inovações historiográficas e às novas tecnologias, a história das mulheres ampliou sua área de investigação para a família, gestos, sentimentos, sexualidade, violência, morte e medo” (CONCEIÇÃO, 2009, p. 19).
A partir da década de 1980 a contribuição dos movimentos feministas para a releitura e reconstrução da história da humanidade passou a ter grande destaque nas pesquisas acadêmicas. A categoria gênero começou a ser utilizada pela história, pela sociologia, pela antropologia e por outras ciências humanas com a finalidade de demonstrar e sistematizar a condição sociocultural de desigualdade existente entre mulheres e homens, presente na esfera pública e privada, e que se manifestava historicamente através dos distintos papéis sociais desempenhados por ambos os sexos, de onde surgiam dois pólos, o de dominação e o de submissão. Nesta dinâmica sociocultural, “impõe-se o poder masculino em detrimento dos direitos das mulheres, subordinando-as às necessidades pessoais e políticas dos homens, tornandoas dependentes” (TELES e MELO, 2012, p. 14-15).
O conceito de gênero passou a ser utilizado de modo amplo para caracterizar as relações entre homens e mulheres, assumindo como pressuposto básico a ideia de que a formulação de uma história das mulheres necessitava obrigatoriamente dos estudos acerca das interrelações entre os dois sexos.
As discussões em torno da categoria gênero trouxeram grandes contribuições no debate entre natureza e cultura, uma vez que a própria ideia de natureza passou a ser reconhecida como sendo um conceito cultural. Schüssler Fiorenza (2009, p. 130) explica essa dinâmica:
A construção cultural de macho e fêmea, masculino e feminino como categorias complementares e mutuamente excludentes ao mesmo tempo constitui o sistema ocidental de sexo/gênero que estabelece uma correlação entre sexo e conteúdos culturais segundo hierarquias e valores sociais. [...] gênero não é um fator naturalmente dado, mas uma construção social, um princípio sociocultural de classificação que impõe à identidade sexual biológica um significado psicológico, social, cultural, religioso e político.

Os estudos elaborados por teólogas feministas evidenciaram o fato de que as diferenças entre a condição das mulheres e dos homens na sociedade não se explicavam pela natureza das coisas, e sim pela cultura. Uma vez que se assumia a cultura como construto humano, as designações homem e mulher passaram a ser vistas como construções de identidade pessoal e social que ocorrem num processo complexo de dinâmicas de relações de poder no seio de estruturas de sistemas patriarcais de dominação nas quais os meios de comunicação atuam como um fator substancial para a consolidação destas categorias. Dito de outro modo,
a categoria de gênero enfatiza o caráter social das distinções construídas a partir das diferenças biológico-sexuais. A construção de nossas identidades femininas e masculinas depende mais da nossa cultura do que da nossa anatomia. Pois não é verdade que as chamadas “características” de mulheres e de homens sejam “naturais”, mas elas são construídas, assumidas, introjetadas e reproduzidas por mulheres e homens em seus processos de educação, produção e reprodução (RICHTER REIMER, 2000, p. 1920).

Ao se constatar que as relações de gênero não eram naturais, mas construídas socialmente fez-se necessário refletir sobre o processo de construção e manutenção de tais relações em uma sociedade. Lemos (1994) assevera que é possível compreender este processo a partir do enfoque das representações sociais que são um conjunto de conceitos, afirmações, e explicações que constroem significados comuns a uma sociedade. Através da análise das representações sociais torna-se possível analisar não apenas a formação diferenciada de identidades de gênero masculina e feminina, como também se pode avaliar o papel da religião nesse processo, uma vez que o discurso religioso foi um dos principais instrumentos legitimadores da cosmovisão que estruturou e defendeu o modelo tradicional de família patriarcal cristã, legitimando assim, as relações de gênero que ocorreram em seu interior. A análise da influência do discurso religioso tornou-se imprescindível para a compreensão das representações sociais porque “a religião, com seus símbolos, também se faz na teia das representações compartilhadas por uma sociedade. A construção simbólica do gênero e da religião se funda nas representações sociais” (LEMOS, 1994, p. 78).
Uma vez que se pode constatar a participação ativa do discurso religiosom no processo de legitimação da prática de toda sorte de violências contra a mulher no desenvolvimento histórico da sociedade ocidental, surgiram também neste contexto histórico religioso, através de vários movimentos teológicos feministas, muitas modalidades de leituras bíblicas, variados modelos de interpretação, diferentes olhares e diversos métodos feministas de interpretação da Bíblia tais como: os métodos corretivos de interpretação, os métodos histórico-reconstrutivos, os métodos imaginativos de interpretação e os métodos de conscientização (SCHÜSSLER FIORENZA, 2009, p. 154-182).
Estes métodos que compõem uma leitura bíblica feminista libertadora pretendem resgatar o lugar de dignidade da mulher nos diferentes contextos sociais da atualidade a partir do viés religioso e trazem em seu bojo os seguintes significados e implicações:
Visibilizar as histórias e os corpos de mulheres e outras minorias qualitativas nas suas múltiplas relações; desmascarar o silêncio e a ausência de mulheres e outras minorias qualitativas; questionar as falas e normas androcêntrico-patriarcais sobre funções de mulheres e outras minorias qualitativas; analisar as funções libertadoras ou opressoras presentes no texto; perguntar pelos efeitos históricos do texto na construção das múltiplas relações; conhecer e (re)construir outras imagens de Deus e maneiras de relacionar-se com Deus; elaborar uma ética que afirma a vida como valor absoluto, buscando construir novas relações de gênero e afirmando a interdependência de todos os elementos da criação (RICHTER REIMER, 2005, p. 35. Os itálicos pertencem ao texto).

Desse modo, os referenciais hermenêuticos feministas, com suas múltiplas possibilidades de leitura, buscam resgatar o espaço devido à mulher na Bíblia/religião e na sociedade atual, quebrando os grilhões históricos de silenciamentos impostos por uma cultura caracteristicamente androcêntrica que durante séculos justificou toda sorte de violências contra a mulher em nome da ‘natureza’ e da religião.
Para além da compreensão do processo de construção e manutenção das relações de gênero vale ainda lembrar que:

Não basta, portanto, analisar a existência de estruturas de opressão, mas é imprescindível averiguar e pesquisar, no passado e no presente, onde e como essas estruturas foram e são construídas, questionadas, transgredidas, superadas, ou o que ainda pode e deve ser feito. Se gênero é algo construído, pode também ser transformado, desconstruído e reconstruído, e novas relações de gênero podem ser criadas e vivenciadas! (RICHTER REIMER, 2005, p. 27).

Como se pode observar até aqui, os estudos de gênero têm contribuído de maneira significativa para a compreensão das relações sociais desiguais e injustas entre homens e mulheres quando analisa as estruturas e relações de poder estabelecidas na sociedade. Estes esforços têm sido coroados de êxitos e têm promovido conquistas significativas no sentido de se reelaborar um discurso que promova a equidade entre homens e mulheres, além de proporcionar elementos que possibilitaram o surgimento de mecanismos legais de coerção da prática da violência contra a mulher como constataremos a seguir.

1.3 O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL: A SITUAÇÃO ATUAL

O fenômeno da violência contra a mulher é um tema social atualíssimo e constitui-se numa das práticas mais denunciadas e que ganharam maior visibilidade nas últimas décadas em praticamente todas as partes do mundo (JESUS, 2010, p. 8). Este fenômeno social é um problema tão grave no Brasil, que chegou a ser considerado em nosso país como uma endemia, um caso de saúde pública (GIORDANI, 2006, p. XVIII).
Uma pesquisa nacional realizada entre os anos 2001 e 2010 pela Fundação Perseu Abramo (FPA) da Universidade de São Paulo (USP) revela que no Brasil, a cada dois minutos, cinco mulheres são espancadas. Segundo a imprensa local, Goiás ocupa a 6ª colocação neste triste quadro. Em Goiás, nos últimos anos, o número de atendimentos na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), alcançou uma média de sete mil casos. No ano de 2008 foram denunciados 7643 casos de prática de violência contra a mulher que incluíam lesão corporal, estupro, ameaça dentre outros. Em 2009, 6903 casos foram registrados. Nos primeiros cinco meses do ano de 2011, só na cidade de Goiânia foram registradas 1882 ocorrências de violência contra a mulher, assim caracterizados: 536 casos de lesão corporal, 27 casos de estupro, 1043 casos de ameaça, 35 casos de perturbação da tranquilidade, 24 casos de vias de fato, 8 casos de ato obsceno, 9 casos de danos, 6 casos de tentativa de homicídio, 194 casos de difamação, calúnia e injúria (NERY JUNIOR, 2011, p. 16-17).
De junho a outubro de 2011 a DEAM registrou mais 1546 ocorrências de violência contra a mulher em Goiânia, assim distribuídas: 542 casos de lesão corporal, 27 casos de estupro, 763 casos de ameaça, 30 casos de perturbação da tranquilidade, 48 casos de vias de fato, 15 casos de danos, 13 casos de tentativa de homicídio, 108 casos de difamação, calúnia e injúria (NERY JUNIOR, 2011, p. 18).
Se compararmos os dados referentes a esses dois períodos, os números de denúncias diminuíram no segundo semestre de 2011. Todavia, se prestarmos atenção à tipificação dos delitos cometidos contra as mulheres, notaremos que no segundo semestre o número de mulheres que foram assassinadas duplicou, passou de 24 casos no primeiro semestre para 48 casos no segundo semestre. Se levarmos em conta que boa parte dos casos de violência contra a mulher não chegam à DEAM, estes números podem aumentar de forma assustadora.
Um estudo divulgado recentemente (www.estadão.com.br – 7 de maio de 2014) apontou para o fato de que o Brasil ocupa uma triste posição no ranking mundial quando o assunto diz respeito à prática da violência contra a mulher. Nossa nação ocupa a sétima posição dentre oitenta e quatro países com o maior índice de femicídios.
Femicídio é uma expressão criada recentemente. Ela foi utilizada pela primeira vez por Jill Radford e Diane Russel, autoras do livro Feminicide: the politics of woman killing, publicado no ano de 1992. A partir dos conceitos estabelecidos por estas autoras, Jesus apresentou a seguinte definição deste termo: “1) Femicídio: entender-se-á por femicídio o assassinato de mulheres por razões associadas ao seu gênero (sua condição de mulher). Pode assumir duas formas: femicídio íntimo e femicídio não íntimo. 2) Femicídio íntimo: assassinato cometido por homem com quem a vítima tinha ou teve relação íntima, familiar, de convivência ou afim. 3) Femicídio não íntimo: assassinato cometido por homem com quem a vítima não tinha relação íntima, familiar, de convivência ou afim. Geralmente esse tipo de femicídio evolui ou decorre de um ataque sexual prévio. 4) femicídio por conexão: refere-se à mulher que foi assassinada por estar na “linha de fogo” de um homem que tenta matar outra mulher. É o caso de mulheres, meninas, parentes ou amigas que intervêm para evitar o fato, ou que simplesmente são afetadas pela ação do femicída” (JESUS, 2010, p. 13).
De acordo com o Mapa da Violência de 2012: Homicídios de Mulheres no Brasil (http://mapadaviolencia.org.br/pdf2013), trabalho que resultou de uma pesquisa coordenada pelo sociólogo Júlio Jacobo Waiselfisz, no ano de 2011 a região Centro Oeste ficou em 1° lugar entre as regiões do Brasil que cometeram maior número de homicídios femininos, e Goiás ocupou a 2ª posição no ranking entre os Estados brasileiros com maior índice de femicídios.
Uma rápida passada de olhos pelos principais meios de comunicação é suficiente para que se tenha noção prévia da dimensão e seriedade deste problema, como registramos a seguir. A cada uma hora e meia, uma mulher morre vítima de violência masculina no Brasil, diz Ipea. Parceiro ou ex-parceiro comete maioria dos crimes, metade das mortes é com arma de fogo (noticias.r7.com,  25/09/2013). Casos de violência contra mulher aumentam em Santarém. Até novembro, 479 casos de violência foram registrados. Maioria das denúncias é referente à ameaça, injúria e lesão corporal leve (G1 Santarém, 26/11/13).  Número de denúncias de violência contra a mulher cresce 12% no DF. Foram 14.731 chamados em 2013, contra 13.141 no ano anterior. Dados de 2012 mostravam o DF como líder em denúncias no país (G1 DF, 15/01/14). Inquéritos de violência contra a mulher crescem 38% em 3 anos em Uberlândia (Correio de Uberlândia, 02/02/14). Ainda mais violência contra as mulheres. Após o crime bárbaro contra professora e seu filho, em Olinda, outras duas mulheres foram mortas em Caruaru. Na Bahia, homem sequestrou, torturou e cegou exmulher grávida (Jornal do Commercio, 19/02/14). 42,5% dos casos de violência contra mulher [no Brasil] são praticados por companheiro (TV Jornal 03/03/14). ISP: violência física, sexual e moral contra a mulher cresce no Rio (Jornal do Brasil, 08/03/14). Casos de violência contra a mulher aumentam em Rio Grande (Jornal Agora 17/03/14). 31 mil processos de violência contra a mulher tramitam no TJ. Goiânia tem quase 20% dos processos do Estado. Joviânia lidera quando a avaliação é proporcional (sindepol.com.br/site/noticias).

Os números não param por aí. Basta uma pesquisa em websites com o tópico violência contra a mulher no Brasil para encontrarmos milhares de referências que fazem alusão ao tema. Diante de dados tão aterradores como estes, surgem algumas perguntas que exigem respostas imediatas: O que significa violência contra a mulher? Onde ela normalmente ocorre? Quais são os mitos mais comuns que giram em torno desta prática? Quem é geralmente o agente agressor? Por que muitas mulheres se submetem a uma relação violenta? Que medidas têm sido tomadas para coibir e erradicar esta prática no Brasil?

1.3.1 A Violência Contra a Mulher na Atualidade e Seus Mitos Legitimadores

A expressão “violência contra a mulher” veio à tona nos 1970 através do movimento feminista e surgiu como uma espécie de denúncia à prática de violência contra a pessoa do sexo feminino, simplesmente pelo fato desta pessoa ser mulher. Esta expressão pressupunha a intimidação da mulher pelo homem que era visto como o agressor, o dominador e o disciplinador dela. Um termo técnico equivalente a este, a expressão “violência de gênero”, surgiu e passou a ser usado como designativo desta prática repulsiva (TELES e MELO, 2012, p. 17).
 Desta época por diante, uma série de expressões buscaram não apenas definir com maior amplitude o significado de “violência contra a mulher” como também demonstrar as consequências e implicações de tal prática para a mulher, a família e a sociedade. Seu significado ultrapassou a concepção vinculada às agressões físicas e sexuais e assumiu conotações mais amplas incluindo outras atitudes e comportamentos de caráter permanente que, “independentemente do ato agressivo em si, estão impregnados de conteúdo violento, de caráter simbólico, implicando desde a educação diferenciada até toda uma cultura sutil de depreciação da mulher” (GIORDANI, 2006, p. 145).
 A denúncia da prática da violência contra mulher não é algo recente no Brasil. Há muito que este tema tem sido objeto de estudo. Todavia, os esforços para o combate e a prevenção desta prática tornaram-se maiores e mais efetivos a partir das décadas de 1970 e 1980, quando esta temática passou a integrar o cenário político e social brasileiro e começou a entrar na pauta de reinvindicações importantes de grupos feministas e de governantes. Segundo Barreira e Almeida (apud PAULA, 2012, p. 38):
Vários fatores concorreram para o aumento da visibilidade da violência contra as mulheres ao longo da história. Destacam-se o movimento feminista, os comitês de direitos humanos, a imprensa e outras instituições que permitiram a passagem das ocorrências de violência do âmbito doméstico para o público. A possibilidade de denúncias tornou claro um sentido coletivo não restrito à relação
particular entre acusador e acusado. [...] Na medida em que as mulheres passaram a ser consideradas como sujeito de direitos (direito ao trabalho, à saúde, à educação), as formas de aviltamento ou humilhação tiveram um espaço público de denúncia.

Na década de 1990 a violência contra as mulheres tornou-se objeto de atenção e preocupação no âmbito internacional. Através de um trabalho de conscientização junto à sociedade em geral, possibilitado especialmente pelo uso massivo dos meios de comunicação, começou a surgir uma nova consciência de que os espancamentos de mulheres deveriam ser assumidos como um problema social e de saúde pública, não apenas pelo elevado número de casos como também pela gravidade de suas consequências não apenas físicas como também psicológicas para as mulheres vitimadas (GIORDANI, 2006, p. 147).
 Uma vez que se constatou um elevado número de traumas e mortes de mulheres vítimas de violência não apenas no Brasil como em toda a América Latina, o tema tornou-se objeto de interesse para estudiosos de diversas áreas do conhecimento, tais como, sociologia, antropologia, filosofia, direito e ciências da saúde.
As pesquisas levadas a cabo daí por diante confirmaram um triste fato. O maior número de violências praticadas contra as mulheres ocorre no seio da família e geralmente os agentes agressores são aqueles que deveriam amar e cuidar delas. Maria da Penha Maia Fernandes, a inspiradora da Lei 11.340/06 que leva o seu nome, em entrevista sobre os efeitos negativos da prática da violência doméstica para a reprodução de comportamentos violentos nas crianças, reconhece que o lar tem sido o espaço privilegiado onde essas ações violentas ocorrem e enfatiza que a manutenção de um relacionamento harmonioso entre os membros da família, em especial entre marido e mulher, atua como mecanismo de prevenção de práticas violentas contra mulheres nas futuras gerações. Segundo ela,
[...] A família é o primeiro elo do indivíduo com o mundo; é através dela que este indivíduo vai formar seus valores, crenças, seus conceitos e preconceitos, por isso, o papel da família é incomensurável para a formação do indivíduo e, por isso, é tão importante que exista harmonia, respeito e amor no seio familiar, para que estes valores sejam transmitidos aos filhos e assim por diante. Citando Benjamin Franklin: “Paz e harmonia: eis a verdadeira riqueza de uma família” (FERNANDES apud PAULA, 2012, p. 89).

O lar é um espaço inviolável onde ocorre a construção primária de nossa identidade, onde encontramos refúgio e amparo e onde nossas necessidades básicas materiais e afetivas são atendidas. Este espaço ‘sagrado’, que é sinônimo de aconchego, serenidade e diversão, passou a ser identificado “como um lugar em potencial da violência, mais especificamente da violência contra crianças e mulheres” (RICHTER REIMER e MATOS, 2011, p. 75).
Heleieth Saffioti (1994) baseada em estudos realizados na década de 1990 onde o foco da pesquisa estava centrado na análise e discussão da dinâmica da violência de gênero no Brasil contemporâneo apontou a figura do homem como sendo o principal agressor da mulher nas relações de gênero que ocorrem na estrutura interna da família. De acordo com ela:
A violência masculina contra a mulher é constitutiva da organização social de gênero no Brasil. Trata-se de numerosas formas de violência, desde as mais sutis, como a ironia, até o homicídio, passando por espancamentos, reprodução forçada, estupro etc. Via de regra, a violação sexual só é considerada um ato violento quando praticada por estranhos ao contrato matrimonial, sendo aceita como normal quando ocorre no seio do casamento (SAFFIOTI, 1994, p. 151).

Uma enorme gama de mitos tem surgido historicamente para explicar as causas e justificar a violência praticada contra a mulher, principalmente aquele tipo de violência que ocorre no seio da família. Núñez (2005) assevera que os mitos estão tão arraigados na cultura que às vezes é quase impossível determinar onde começa a realidade e termina a fantasia. Eles se repetem com tanta regularidade e estão tão disseminados no subconsciente coletivo que parecem fazer parte do acervo cultural de todos, de modo que, opor-se a eles torna-se uma tarefa de grande envergadura e quase impossível de ser realizada.
Núñez, a partir de uma ampla pesquisa acerca da violência contra a mulher no contexto da América Latina, Europa e América do Norte, apresenta uma lista contendo alguns dos principais mitos em torno da violência doméstica e familiar e procura desmistificá-los a partir de dados empíricos. Entre aqueles mitos que são comumente utilizados para explicar os atos violentos praticados contra mulheres ele menciona os seguintes: a violência não afeta muitas pessoas; a violência é resultado apenas de um momento de irritação; este fenômeno só ocorre entre gente pobre e de áreas marginais; os casos de violência em geral não produzem sérios danos; é fácil para uma mulher maltratada fugir de seu agressor; a violência familiar é fruto de algum tipo de doença mental; se há violência não pode haver amor em uma família; a violência emocional não é tão grave como a violência física; a conduta violenta é algo inato ao ser humano; a violência intrafamiliar não ocorre em lares cristãos comprometidos; e, frequentemente as mulheres provocam para que os homens as agridam (NÚÑEZ, 2005, p. 15-17). Núñez, à medida que faz alusão a estes mitos apresenta dados empíricos que os refutam. Por exemplo, acerca do mito que afirma ser a violência familiar reflexo de alguma doença mental do agressor ele diz o seguinte:
Essa é outra das fantasias que permite a muitos desculpar, explicar e tolerar o abuso físico e psicológico contra mulheres que conhecem. A verdade é que só 10% dos casos de violência são ocasionados por algum distúrbio psicopatológico (NÚÑEZ, 2005, p. 16).

No Brasil, vários destes mitos são conhecidos e amplamente utilizados para explicar atos violentos contra mulheres no contexto familiar. Nery Júnior afirma que entre as justificativas mais comuns para a prática da violência contra a mulher na sociedade brasileira figuram as seguintes: a violência doméstica só ocorre esporadicamente; a violência doméstica só acontece em famílias de baixa renda; as mulheres apanham porque gostam ou porque provocam; a violência só acontece nas famílias problemáticas; os agressores não sabem controlar suas emoções; se a situação fosse tão grave, as vítimas abandonariam logo os agressores; é fácil identificar o tipo de mulher que apanha; e, a violência doméstica vem de problemas com o álcool, drogas ou doenças mentais (NERY JÚNIOR, 2011, p. 24-25). Uma vez apresentados, o autor desmitifica as ideias e conceitos associados a cada um destes mitos a partir de dados empíricos. Por exemplo, para o mito que assevera que a violência doméstica só ocorre esporadicamente, ele apresenta os seguintes dados estatísticos: “a cada 2 minutos, 5 mulheres são espancadas no Brasil” (NERY JÚNIOR, 2011, p. 24).
Segundo Saffioti (1994), diferentes das explicações míticas acima mencionadas, o fenômeno social contemporâneo da prática da violência contra a mulher no Brasil tem suas raízes históricas no processo de formação   sociocultural do povo brasileiro e da constituição de sua identidade, uma vez que a concepção tradicional da relação de gênero, que aponta o sexo masculino como dominador e o feminino como subordinado, é fruto de um construto social milenar. Durante séculos, nossa concepção patriarcal de sociedade aprovou, legitimou e justificou socialmente toda sorte de práticas violentas contra a mulher.
Além dos mitos que ‘explicam’ porque ocorre a violência doméstica contra as mulheres, existem outros que buscam justificar essa prática a partir da descrição do perfil do agressor e da mulher agredida. Nesta perspectiva, o agressor geralmente é apontado como a grande vítima no processo, uma vez que ele é caracterizado como portador de uma doença mental ou como viciado em álcool ou drogas. Em relação ao perfil da mulher agredida ela é descrita como alguém que recebeu pouca educação ou que pertence a um nível socioeconômico baixo, que gosta de apanhar e ser maltratada e que é sempre responsável pelas agressões que sofre, ou seja, ela deve ter feito alguma coisa para provocar a situação de agressão (NÚÑES, 2005, p. 34-39).
De acordo com esta visão, o agressor é considerado vítima de uma condição biológica indesejável ou de um sistema socioeconômico injusto que o leva a lidar com suas frustrações através do uso do álcool e das drogas e que culmina com a prática da violência, cujo principal alvo é a mulher. A mulher agredida, em contrapartida, é considerada culpada e responsável pelos maus tratos que sofre, uma vez que é ela que sempre provoca o marido. A mulher, além de sofrer agressões em diferentes níveis ainda é levada a se sentir culpada por ter despertado a ira de seu ‘amado’ esposo.
Maria da Penha ao ser questionada, durante uma entrevista, sobre o perfil da mulher que teria maior facilidade de sofrer agressões de seu companheiro, respondeu o seguinte:
Não existe um perfil da mulher vítima de violência, pois ela está presente em todas as classes sociais, níveis culturais, raças e religiões. Ela acontece em todos os lugares do mundo: nos países pobres, ricos ou desenvolvidos. Dizer que só quem apanha do marido são as mulheres pobres e analfabetas não é verdade. No entanto, a mulher criada em ambiente de violência onde sua mãe é com frequência agredida por seu pai, tem maior dificuldade de se libertar de um relacionamento violento por achar “normal” esse tipo de conduta (FERNANDES apud PAULA, 2012, p. 91).

Um fato que tem chamado a atenção dos estudiosos deste fenômeno é a atitude de resiliência de algumas mulheres que têm sido vítimas de violência doméstica, e que mesmo diante de agressões verbais, psicológicas, morais, físicas e sexuais permanecem ao lado de seus agressores. Entre os fatores que explicam tal conduta encontram-se: o medo de que o agressor cumpra as ameaças de morte ou suicídio, caso ela venha a se separar dele; vergonha ou medo de procurar ajuda de terceiros, o que pode piorar e muito a intensidade das agressões; sensação de fracasso e culpa na escolha do par amoroso; esperança de que o parceiro algum dia possa milagrosamente mudar; isolamento da vítima; despreparo da sociedade, das próprias famílias e dos serviços públicos ou privados para lidar com este tipo de violência; disputa pela guarda dos filhos, boicotes de pensões alimentícias; dependência econômica, falta de qualificação profissional e baixa escolaridade; crenças religiosas como a da indissolubilidade do casamento; e, a preocupação com a situação dos filhos (NERY JÚNIOR, 2011, p. 26-27). Somem-se a isso o desconhecimento de seus direitos de cidadania e a dificuldade para apresentar provas de maus tratos.
Apesar de todos estes fatores, que indubitavelmente podem tornar-se empecilho para o rompimento de um relacionamento doméstico, algumas mulheres parecem sentir prazer em viver uma relação violenta e, aparentemente, mesmo que pudessem, não abandonariam seus agressores. Por incrível que pareça, elas se vinculam aos seus vitimadores de tal maneira que chegam a converter-se em defensoras deles, a ponto de justificar, explicar e tolerar os atos de violência a que foram submetidas. Elas encontram-se presas a um ciclo de violência que aparenta não ter fim.
Este fenômeno tornou-se objeto de investigação e a explicação mais plausível encontrada até o momento vem da psiquiatria. Em 1978, o psiquiatra norte americano Frank Ochberg descreveu pela primeira vez o fenômeno de dependência de um agredido em relação ao seu agressor, ao estudar casos de pessoas vítimas de sequestro e que depois de alguns dias em poder dos sequestradores criavam vínculos de confiança e dependência em relação a eles. Este fenômeno foi denominado Síndrome de Estocolmo. A Síndrome de Estocolmo pode ser definida como,
[...] o comportamento que faz com que uma pessoa que se vê sequestrada se identifique com o sequestrador, até o ponto de acreditar que as razões deste são válidas, seus métodos necessários e, definitivamente, que o é um atentado contra seus interesses e liberdade seja aceito como bom, apesar do sofrimento que lhe ocasiona (NÚÑEZ, 2005, p. 22).

A consolidação da relação entre sequestrador e vítima se dá pela conduta contraditória do mesmo que ora age com a vítima de modo gentil e amável, ora de modo totalmente truculento e agressivo. Estas condutas contraditórias do agressor causam na vítima algumas reações, que foram descritas como fases de instauração da Síndrome de Estocolmo. Estas fases são as seguintes:
a. Fase de negação: A pessoa diz a si mesma: “Isto não pode estar acontecendo comigo”; “Isto não é real”. Quando percebe que sim, que é real o que lhe esta acontecendo, vem o segundo momento do processo. b. Fase de aceitação: A vítima se convence de que sua situação é limítrofe e se vê totalmente dependente do agressor a quem costuma perceber como uma pessoa superior e de características extraordinárias. [...] c. Fase de depressão traumática e pós-traumática: A pessoa sabe que é agredida. Entende sua situação limite. Compreende que esta indefesa frente a um agressor que pode atuar com arbitrariedade em sua vida. Esta constatação produz angústia, ira e autocomiseração – a mistura perfeita para a depressão. Entretanto, se a situação se prolonga, vem a quarta fase, que faz de todo o processo algo muito estranho. d. Fase da integração do trauma à vida normal: Nessa etapa, a pessoa simplesmente aceita a agressão como algo normal e a integra em sua vida cotidiana. Nesse estágio, as vítimas, como uma forma de autoproteger-se, convertem-se em defensoras de seus vitimadores (NÚÑES, 2005, p. 22-23).

O pesquisador Andrés Montero-Gomez (NÚÑES, 2005), da Sociedade Espanhola de Psicologia da Violência, aplicou estas premissas a casos específicos de mulheres vítimas de violência doméstica e desenvolveu uma teoria, apresentada pela primeira vez no ano 2000, que hoje tem sido identificada como “Síndrome doméstica de Estocolmo”. Esta Síndrome também foi estruturada a partir de quatro fases assim descritas:
a. Fase desencadeante: Rompe-se o vínculo afetivo e de segurança no qual se havia configurado a relação. A ruptura chega com as primeiras surras do homem. A mulher sofre um “padrão de desorientação, perda de referenciais, reações de estresse” com tendência à depressão.  b. Fase de reorientação: A mulher começa a buscar novos referenciais para o futuro, procurando reordenar a compreensão do que está vivendo. Ocorre uma tensão entre o compromisso afetivo que tem com o vitimador, por um lado, e a realidade traumática que vive, por outro lado. Nessa fase, a mulher se “autorrecrimina pela situação e entra em estado de desamparo e  resistência passiva” que propicia passar ao estágio seguinte. c. Fase de Confronto: A mulher assume o modelo mental de seu esposo e “busca vias de proteção de sua integridade psicológica, tratando de resolver a situação traumática”. d. Fase de adaptação: A agredida “projeta parte da culpa para o exterior, para os outros”. É nesse momento que a Síndrome de Estocolmo se consolida porque a vítima internaliza “um processo de identificação” “em torno do modelo mental explicativo do esposo, sobre a situação vivida no lar e sobre as relações causais que a originaram”. É nessa fase que ocorrem as defesas que parecem loucura [...] (NÚÑES, 2005, p. 23-24).   Como pudemos constatar, além de todos os danos que os atos violentos podem causar à mulher, em alguns casos, eles podem gerar uma estranha, mas real, relação de codependência entre a vítima e o agressor. O grande diferencial entre este estado de codependência e outros estados psicóticos é que, neste caso, a Síndrome doméstica de Estocolmo é reversível, bastando que a vítima conte com a ajuda de um profissional qualificado capaz de auxiliála e guiá-la a fim de que ela possa “reordenar cognitivamente sua realidade e possa chamar a agressão com o nome que tem: violência, que constitui um delito” (NÚÑEZ, 2005, p. 24).
Diante do que foi exposto até aqui é possível identificar mecanismos diversos que procuram justificar e legitimar a cosmovisão patriarcal e androcêntrica que serve como fundamento para a prática da violência contra a mulher na sociedade brasileira. Os mitos aqui apresentados são tentativas humanas de se explicar uma prática perversa e desumana contra mulheres. Justificar as ações do agressor como sendo resultado da baixa condição social, dos vícios ou de problemas de ordem psicológica é tirar do ser humano a responsabilidade legal pelos seus atos. Justificar práticas violentas contra mulheres à partir da condição de dependência econômica que elas têm, ou como resultado de traumas psicológicos oriundos da Síndrome de Estocolmo é vitimizá-la uma segunda vez. Portanto, todos estes artifícios que surgem e que procuram, de algum modo, explicar e justificar atos violentos contra mulheres, não passam de mecanismos materializadores de uma cosmovisão opressora.


1.3.2 Os Direitos Humanos Como Instrumentos de Resistência à Prática da Violência Contra a Mulher

O fenômeno social da violência contra a mulher, uma vez que se tornou objeto de estudos e que sua real situação começou a ser demonstrada abertamente através de dados estatísticos, passou, então, a ser reconhecido como um crime, uma violação grave dos direitos humanos relacionados ao sexo feminino.
A discussão sobre o significado e as implicações daquilo que se convencionou denominar direitos humanos tem suas origens históricas no mundo moderno, em particular, na Era do Iluminismo. A ideia de que os homens podem organizar o Estado e a sociedade de acordo com os ditames de sua própria consciência e, não mais de acordo com a vontade de Deus, serviu de inspiração para a criação de organismos internacionais de defesa dos direitos humanos, surgidos em especial no período pós-guerra. As reivindicações generalizadas destes organismos foram redefinidas em convenções internacionais, que uma vez ratificadas pelos países membros destes órgãos internacionais passam a incorporar na legislação interna aqueles postulados contidos nas convenções internacionais. Na teoria do direito,
[...] o termo direitos humanos é preferencialmente usado para indicar estas aspirações mais genéricas vertidas nos documentos internacionais, ao passo que direitos fundamentais designam estas mesmas pretensões positivadas na ordem jurídica interna, quando finalmente ganham proteção do Estado e, por isso mesmo, força cogente (PORTO, 2012, p. 15).

Um dos mais conhecidos e importantes órgãos internacionais de luta em defesa dos direitos humanos é a Organização das Nações Unidas (ONU). A ONU foi fundada em 1945 após a Segunda Guerra Mundial com o propósito de deter a guerra entre as nações e estabelecer uma plataforma de diálogo entre elas. Atualmente ela possui 193 países membros. O ano de 1948 é um marco histórico importante para a discussão do conceito de direitos humanos. No dia 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral da ONU reunida em Paris, adotou e proclamou a Declaração Universal dos Direitos humanos (11 Este documento consta na íntegra no ANEXO C). Foi a primeira vez que a proteção universal dos direitos humanos foi estabelecida. Os dois primeiros artigos da referida Declaração rezam o seguinte:
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão  e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.   Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua,  religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948).

O pressuposto básico para a elaboração deste documento foi o reconhecimento da dignidade humana aplicável indistintamente a todos os componentes da humanidade. Dignidade pode ser definida como sendo um atributo que qualifica a pessoa humana,
[...] É uma concepção de que “em razão tão somente, de sua condição humana, e independentemente de qualquer outra particularidade, o ser humano é titular de direitos que devem ser respeitados pelo Estado e por seus semelhantes. É, pois, um predicado tido como inerente a todos os seres humanos” (SARLET apud RICHTER REIMER e REIMER, 2011, p. 27).

 A história de apoio e defesa dos direitos das mulheres inicia-se neste importante documento da ONU. Aqui os direitos pertencem a todos os seres humanos independentemente de qualquer distinção, inclusive a sexual. Teoricamente homens e mulheres são iguais perante esta Declaração.
Dentre os inúmeros compromissos internacionais ratificados pelo Brasil em convenções internacionais, principalmente no que diz respeito aos direitos das mulheres, dois documentos merecem ser mencionados.
O primeiro documento relevante para o tema direitos da mulher é a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, conhecida pela sigla CEDAW (Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women), aprovada pela ONU em 18 de dezembro de 1979. Esta Convenção foi assinada pelo Brasil, com reservas em 31 de março de 1981 e foi ratificada plenamente após a Constituição de 1988 que preconizou a igualdade de gênero (PORTO, 2012, p. 15).
Esta Convenção desempenhou um papel tão importante para a luta a favor dos direitos da mulher que é conhecida como Carta Internacional dos Direitos da Mulher. Dividida em seis partes e contendo 30 artigos, ela apresenta definições importantes e propostas para ações que têm como finalidade combater a discriminação contra as mulheres. De acordo com este documento a cultura e a tradição exercem influência na concepção dos papéis de gênero e nas relações intrafamiliares (pge.sp.gov.br). O Artigo 1° define a “discriminação contra a mulher” como sendo: [...] toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo (CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER, 1979).

O segundo documento de grande relevância na defesa dos direitos das mulheres foi a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra A Mulher, também conhecida como “Convenção de Belém do Pará”, foi adotada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em 09 de junho de 1994 e foi ratificada pelo Brasil no dia 27 de novembro de 1995, sendo considerado, “o documento mais importante, em vigor no Brasil, que trata especificamente da violência contra a mulher” (TELES e MELO, 2012, p. 66).
Os dois primeiros artigos desta Convenção definem o significado e a amplitude da expressão “violência contra a mulher”. Os referidos artigos apresentam o seguinte teor: Artigo 1°: Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado. Artigo 2° Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica: a. que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual; b. que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar, e

c. que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra (CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, 1994).

Outro documento importante no processo de redefinição de fronteiras entre o espaço público e a esfera privada no que diz respeito à caracterização da violência contra a mulher foi a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena que ocorreu entre os dias 14 a 25 de junho de 1993, e que inclusive serviu de inspiração para a Convenção de Belém do Pará. Sua importância no campo da definição dos direitos da mulher se dá pelo fato de ser “o primeiro instrumento internacional que especializa a expressão direitos humanos da mulher” (PORTO, 2012, p. 16), acompanhando uma tendência comum das sociedades modernas de especificar os direitos humanos de acordo com determinadas coletividades ou mesmo com interesses bem particularizados. O artigo 18 da referida Conferência apresenta o seguinte teor:
Os Direitos Humanos das mulheres e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos Direitos Humanos universais. A participação plena das mulheres, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural, aos níveis nacional, regional e internacional, bem como a erradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo, constituem objetivos prioritários da comunidade internacional. A violência baseada no sexo da pessoa e todas as formas de assédio e exploração sexual, nomeadamente as que resultam de preconceitos culturais e do tráfico internacional, são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e devem ser eliminadas. Isto pode ser alcançado através de medidas de caráter legislativo e da ação nacional e cooperação internacional em áreas tais como o desenvolvimento socioeconômico, a educação, a maternidade segura e os cuidados de saúde, e a assistência social. Os Direitos Humanos das mulheres deverão constituir parte integrante das atividades das Nações Unidas no domínio dos Direitos Humanos, incluindo a promoção de todos os instrumentos de Direitos Humanos relativos às mulheres. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos insta os Governos, as instituições e as organizações intergovernamentais e não governamentais a intensificarem os seus esforços com vista à proteção e à promoção dos Direitos Humanos das mulheres e das meninas (DECLARAÇÃO E PROGRAMA DE AÇÃO DE VIENA: CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE DIREITOS HUMANOS, 1993).

Merece ainda ser mencionada a IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, realizada entre os dias 04 a 15 de setembro de 1995 em Beijing, Pequim, no advento do quinquagésimo aniversário de fundação das Nações Unidas. Sua importância se dá pelo reconhecimento em definitivo dos direitos da mulher
como direitos humanos, em sua Declaração e Plataforma de Ação (TELES e MELO, 2012, p. 64).
Entre os objetivos desta Conferência encontra-se no artigo 9° a reafirmação do compromisso de promover, “a plena implementação dos direitos humanos das mulheres e meninas, como parte inalienável, integral e indivisível de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais” (DECLARAÇÃO E PLATAFORMA DE AÇÃO DA IV CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE A MULHER, 1995).

1.3.3 A Lei Maria da Penha (Lei N° 11.340/06) Como Instrumento de Combate à Prática da Violência Contra a Mulher: Avanços e Retrocessos

A partir da influência dos documentos acima mencionados, dentre outros, da contribuição de renomadas juristas, da mobilização de muitas mulheres anônimas, de feministas e de movimentos de mulheres em audiências públicas realizadas em vários Estados do Brasil que apontavam para a necessidade premente de uma legislação específica que contemplasse seus direitos, foi que o Brasil produziu sua própria legislação para combater a violência contra a mulher. Referimo-nos à Lei n° 11340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha.
Todavia, um acontecimento em particular serviu como fator desencadeador de todo esse processo. A designação de Lei Maria da Penha, que a Lei 11340/2006 recebeu, foi uma homenagem feita a uma sobrevivente da violência doméstica. Maria da Penha Maia Fernandes ( Os dados biográficos aqui apresentados foram extraídos de: NERY JUNIOR, 2011, p. 10-13, e do INFORME 54/01 – OEA, 2001. ),  é uma cearense que nasceu em 1945 em Fortaleza. Graduou-se em Farmácia e Bioquímica na Universidade Federal do Ceará e fez Mestrado em Parasitologia em São Paulo, período em que conheceu um professor de economia colombiano, Marco Antônio Heredia Viveiros, que brevemente viria a ser seu esposo e seu maior algoz. Três filhos nasceram como fruto desta relação.

O drama da violência doméstica de Maria da Penha teve início quatro anos após o seu casamento. Inicialmente as agressões eram verbais e psicológicas. Com o tempo foram progredindo, até que em 1983, seu esposo tentou matá-la com um tiro nas costas que a deixou paraplégica. À época do incidente criminoso, seu marido alegou que eles haviam sido vítimas de um assalto e inclusive feriu-se com uma faca para acobertar sua tentativa de homicídio. Depois de cinco meses em hospitais de Fortaleza e Brasília, Maria da Penha voltou para casa. Mal sabia ela o que a aguardava. Duas semanas depois, seu marido tentou assassiná-la novamente. Ele tentou eletrocutá-la durante um banho, ocasião em que ela tomou coragem e decidiu separar-se dele e denunciá-lo.
Mesmo diante da gravidade da violência sofrida por Maria da Penha e das tentativas de assassinato às quais ela havia sido submetida o sistema judiciário brasileiro não deu a devida atenção aos seus reclames. Durante 15 anos ela esperou por justiça e não obteve êxito. Diante da possibilidade de prescrição do crime cometido pelo seu esposo contra sua vida, Maria da Penha decidiu recorrer a órgãos internacionais. Em 1998, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL Brasil) e o Comitê Latino-Americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM Brasil), juntamente com Maria da Penha recorreram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA) encaminhando uma petição contra o Estado brasileiro, relativa ao paradigmático caso de violência doméstica do qual ela tinha sido vítima (Processo Maria da Penha n° 12051). A denúncia à OEA baseou-se dentre outras coisas na violação de vários artigos da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra A Mulher, a famosa “Convenção de Belém do Pará”, que o Brasil havia ratificado três anos antes.
A petição impetrada pelos órgãos internacionais e por Maria da Penha foi aceita e uma vez apurado o caso junto às testemunhas, concluiu-se que o agressor havia agido com dolo, de forma premeditada. Uma vez que a justiça brasileira não tomou nenhuma decisão cabível para o processo, não adotou nenhuma medida processual e punitiva contra o agressor, as peticionárias denunciaram o Estado brasileiro por crime de tolerância à violência doméstica. O caso Maria da Penha serviu como uma espécie de evidência que apontou para um padrão sistemático de omissão e negligência em relação à prática comum de violência doméstica e familiar contra as mulheres brasileiras.
Como o Estado brasileiro não apresentou à Comissão da OEA resposta alguma com respeito à admissibilidade ou ao mérito da petição, apesar das solicitações formuladas pela Comissão ao Estado em 19 de outubro de 1998, em 4 de agosto de 1999 e em 7 de agosto de 2000, nem se pronunciou frente à denúncia, em 2001, a OEA, em seu Informe n° 54 de 2001, responsabilizou o Estado brasileiro por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica no caso de Maria Penha que acabou se tornando paradigmático para todas as mulheres brasileiras. O último item que aparece nas conclusões do Informe n° 54 reitera a condenação contra a postura letárgica e omissa da justiça brasileira:
[...] o Estado violou os direitos e o cumprimento de seus deveres segundo o artigo 7 da Convenção de Belém do Pará em prejuízo da Senhora Fernandes, bem como em conexão com os artigos 8 e 25 da Convenção Americana e sua relação com o artigo 1(1) da Convenção, por seus próprios atos omissivos e tolerantes da violação infligida (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – RELATÓRIO N° 54/01 – OEA, 2001).   As recomendações que surgem a seguir exigem, dentre outras coisas, a finalização imediata do processo penal do agressor de Maria da Penha; a instauração de um processo investigativo a fim de determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos injustificados no processo, bem como tomar as medidas administrativas, legislativas e judiciárias cabíveis; reparações simbólica e material por parte do Estado brasileiro à Maria da Penha diante da demora na resposta judicial; e, a adoção de políticas públicas voltadas à prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher no Brasil.
O caso Maria da Penha foi o primeiro de aplicação da Convenção de Belém do Pará. A utilização desse instrumento internacional de proteção aos direitos humanos das mulheres e o seguimento das peticionárias junto à Comissão da OEA, sobre o cumprimento da decisão pelo Estado brasileiro, foram decisivos para que o processo fosse concluído em âmbito nacional, e posteriormente, para que o agressor fosse preso, em outubro de 2002, quase vinte anos após o crime, poucos meses antes da prescrição da pena.

A Lei Maria da Penha é fruto de um intenso trabalho de articulação iniciado em 2002, por meio de um consórcio de ONGs e pela mobilização de diversos segmentos da sociedade brasileira. Ela cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, define as formas de violência às quais a mulher poderá estar sujeita, descreve o espaço onde essa violência ocorre e aponta medidas protetivas para as vítimas além de prescrever sanções para os agressores. Esta Lei foi reconhecida pela ONU em 2008 como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra a mulher (www.spm.gov.br).
Dentre os principais objetivos da Lei Nº 11.340/06, Lei Maria da Penha, poderíamos mencionar: a caracterização da violência doméstica e familiar como violação dos direitos humanos das mulheres; a garantia de proteção e procedimentos policiais e judiciais mais humanizados, para as vítimas da violência doméstica; a apresentação de aspectos conceituais e educativos, muito mais que punitivos, o que a qualifica como uma das legislações mais avançadas e inovadoras do mundo no tratamento do fenômeno da violência doméstica contra a mulher; a promoção de uma real mudança nos valores sociais que naturalizam a violência que ocorre nas relações domésticas e familiares; a elaboração de respostas que possam romper com a cultura machista, gerar novas práticas, reparar as omissões e afastar definitivamente a banalização em torno da violência doméstica, tornando-se assim, um instrumento de mudança política, jurídica e cultural.
A Lei 11.340/06 apesar de não ser exclusivamente uma lei penal, por apresentar em seu bojo disposições administrativas, processuais e princípios gerais, é indubitavelmente, uma lei onde predomina o efeito penal, uma vez que ela “incrementa o poder punitivo do Estado e, consequentemente, diminui o status libertatis do indivíduo” (PORTO, 2012, p. 23), elemento este que tem gerado protestos entre juristas que defendem uma posição minimalista ou garantista de interpretação do ordenamento jurídico brasileiro. A legitimidade social desta Lei está solidamente embasada numa,
[...] realidade cruel de violência preconceituosa e histórica do homem contra a mulher [...] a Lei 11.340/06 não cria novos tipos penais, mas traz em si dispositivos complementares de tipos preestabelecidos, com caráter especializante, em referência aos quais exclui benefícios despenalizadores art. (41), altera penas (art. 44), estabelece nova majorante (art. 44) e agravante (art. 43), engendra inédita possibilidade de prisão preventiva (arts. 20 e 42) etc. (PORTO, 2012, p. 23).

  O Caput da referida Lei e seus quatro primeiros artigos definem com clareza sua especificidade e delimitação. Em relação à especificidade da Lei Maria da Penha, a mulher é primeiramente apresentada como sujeito de direitos, independente de quaisquer condições ou variáveis. Sua classe social, nível cultural, orientação sexual ou suas convicções religiosas não interferem na possibilidade de gozo pleno dos direitos propostos pela referida Lei que, doravante, são garantidos pelo simples fato da mulher ser uma “pessoa humana” (Art. 2°). A Lei apresenta também delimitações referentes aos direitos garantidos por ela. Sua intenção é “coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher” além de propor a criação de instrumentos e mecanismos de assistência e proteção para mulheres em situação de violência doméstica ou familiar, responsabilizando a família, a sociedade e o poder público pela criação das condições necessárias para o pleno cumprimento desta Lei (Art. 1°, 3°, 4°).
Em suma, a Lei trata de direitos de mulheres que vivem em situação de violência, particularmente aquele tipo de violência que ocorre no âmbito das relações domésticas ou familiares. Para isso, ela tipifica a violência doméstica e familiar contra a mulher em termos legais. De acordo com os artigos 5° e 6° da Lei Nº 11.340/06: Art. 5o  Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único.  As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. Art. 6o  A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.

Uma vez que a violência doméstica e familiar contra a mulher foi tipificada, que seu espaço físico de ocorrência foi delimitado e que as relações interpessoais que configuram tal delito foram bem determinadas, o próximo passo estabelecido em Lei foi definir os contornos ou as formas de manifestação deste tipo violência que já não se restringe apenas aos atos violentos que causam lesões corporais ou aos delitos de ordem sexual. Os conceitos das formas nas quais a referida violência se manifesta são ampliados: Art. 7o  São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

A seguir, a Lei trata da assistência à mulher em situação de violência doméstica através da proposição de diretrizes que visam a implantação de medidas integradas de prevenção por meio de “um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais” que tem como finalidade “coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher” (Art. 8°) que serão executadas “de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso” (Arts. 9°).
Os Artigos 10° a 12° estabelecem medidas a serem adotadas pela autoridade policial nos casos em que a violência doméstica se configure. Estas medidas visam dar maior segurança à mulher vítima de violência e surgem como mecanismos de proteção a fim de que ela receba um atendimento adequado. O Artigo 11 prevê uma série de providências a serem tomadas imediatamente em situações de violência doméstica:
Art. 11.  No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências: I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário; II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar; V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis.

Os Artigos 13 a 17 estabelecem os procedimentos legais, as instâncias onde poderão ser instauradas as representações, a abertura dos processos, os julgamentos e as execuções das causas cíveis e criminais resultantes da prática da violência contra a mulher. Esta representação estava condicionada, num primeiro momento, à livre vontade da mulher agredida que, de acordo com o seu próprio arbítrio, poderia renunciar à representação perante um Juiz (Art. 16°).
O Artigo 16° foi alvo de calorosos debates entre os operadores do direito e os juristas. No dia 06 de junho de 2010 foi protocolado junto ao Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a legitimidade de sua proposição. A decisão final desta Ação foi publicada recentemente, em 01 de agosto de 2014, e alterou em definitivo o teor do Artigo 16°. De acordo com o texto do STF decidiu: “[...] assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico, [...]”14, ou seja, nos casos em que a violência contra a mulher ocorrer e for acompanhada de lesões corporais, independentemente da extensão ou gravidade destas lesões, a representação não mais dependerá da vontade da vítima, ao contrário, ocorrerá de forma incondicionada.
Os Artigos 18° a 24° da Lei 11340/06 explicitam uma série de medidas protetivas de urgência ou providências judiciais que podem ser concedidas em caráter emergencial à vítima de violência doméstica e familiar a fim de possibilitar o cumprimento efetivo da Lei, dentre as quais consta a possibilidade de prisão preventiva do agressor em qualquer fase do inquérito (Art. 20°). Entre as medidas protetivas propostas pela Lei, encontramos aquelas que limitam as ações do agressor, tais como o afastamento do lar ou do local de convivência com a vítima (Art. 22°), as que dão suporte logístico à vítima e aos seus dependentes, como o encaminhamento para um programa de proteção ou a recondução em segurança ao seu domicílio (Art. 23°) e as que protegem o patrimônio composto pela sociedade conjugal ou particular da vítima (Art. 24°).
Além das referidas medidas protetivas, a mulher vitimada pela violência doméstica e familiar pode procurar diretamente o Ministério Público que é o órgão responsável junto às demais entidades envolvidas na aplicação da Lei Maria da Penha por ingressar com o processo criminal contra o agressor (Art. 25° e 26°) tendo a vítima, assegurado o direito ao acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária conforme prescreve a Lei:
Art. 27.  Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei. Art. 28.  É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado.

 A Lei prevê ainda a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que poderão contar com equipe de atendimento multidisciplinar composta por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde que deverá atuar conjuntamente para o bom andamento do processo e para a promoção de ações que contemplem as esferas física e psíquica da vítima, de seus dependentes, principalmente quando forem crianças e adolescentes e de reorientação e possível recuperação do agressor (Art. 29° a 32°). Enquanto os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher não forem criados:
Art. 33. [...] as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente. Parágrafo único.  Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput.

As disposições finais preveem a possibilidade de atuação conjunta entre a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios com a finalidade de criar centro de atendimento integral e multidisciplinar, casas-abrigos, “delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médicolegal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar” (Art. 35°), dentre outras ações que visam promover o enfrentamento do problema e, inclusive, a reeducação e reabilitação do agressor, e a operacionalidade da Lei em todo País (Art. 34° a 45°).
Uma vez apresentada a Lei Maria da Penha, é necessário refletir sobre a efetividade de sua aplicação na sociedade brasileira e os resultados obtidos desde que entrou em vigor, no ano de 2006, até o momento.
Uma pesquisa realizada entre os meses de agosto de 2012 e julho de 2013, intitulada “Violência Contra a Mulher e Acesso à Justiça: Estudo Comparativo sobre a aplicação da Lei Maria da Penha em cinco Capitais”, realizada pela CEPIA (15) (Cidadania, Estudos, Pesquisa, Informação e Ação), ONG que teve participação efetiva no processo de elaboração e consolidação da Lei 11340/06, e cujo relatório final foi publicado em outubro de 2013, apresenta alguns dados que podem ser usados como indicadores acerca da efetividade da Lei no Brasil.

15 A CEPIA é uma organização não governamental, sem fins lucrativos, voltada para a execução de projetos que contribuam para a ampliação e efetivação dos direitos humanos e o fortalecimento da cidadania, especialmente dos grupos que, na história de nosso país, vêm sendo tradicionalmente excluídos de seu exercício (NERY JUNIOR, 2011, p. 14).

A pesquisa empírica teve como foco central as instituições de segurança pública e justiça e a forma como seus operadores compreendem a Lei 11.340/2006 e sua aplicação no cotidiano das delegacias e juizados de cinco capitais brasileiras que foram selecionadas em virtude da diversidade de contextos que representam. As cidades escolhidas foram Porto Alegre (RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São Paulo (SP). Entre os entrevistados encontravam-se delegada(o)s de polícia, juíza(e)s, promotora(e)s de justiça, defensora(e)s pública(o)s e profissionais de equipes multidisciplinares, dentre outros diretamente vinculados com discursos e práticas relacionadas à aplicação da Lei Maria da Penha e a defesa dos direitos das mulheres (BARSTED e PITANGUY, 2013, p. 5)
Como resultado da pesquisa alguns dados importantes vieram à tona. Constatou-se, por exemplo, um alto índice de aprovação social da Lei Maria da Penha em pesquisas de opinião que foram realizadas desde que a referida Lei entrou em vigor, em 2006. Dados de uma pesquisa recente conduzida pelo DataSenado (2013) indicaram que 99% das mulheres entrevistadas já haviam ouvido falar sobre a Lei Maria da Penha. Este percentual reflete não somente o alto investimento que vem sendo feito por meio de campanhas educativas que abordam a temática da violência contra a mulher e as recentes conquistas que elas têm alcançado, como também indica uma crescente conscientização das mídias que colocam em destaque os casos de violência contra as mulheres e que informam a sociedade sobre a existência de uma legislação que precisa ser cumprida (BARSTED e PITANGUY, 2013, p. 6-7).
Infelizmente, outras duas pesquisas, também recentes, chamaram a atenção para o fato de que este elevado indicador não apresentava a situação real da sociedade brasileira no que dizia respeito ao conhecimento do conteúdo do texto legislativo da Lei:
Na primeira pesquisa (Instituto Avon/IPSOS, 2011) 94% das pessoas entrevistadas, entre homens e mulheres, haviam ouvido falar sobre a Lei. No entanto mostrou também que esse conhecimento ainda era reduzido com apenas 13% dos entrevistados tendo declarado que conheciam muito ou bastante sobre a lei. Em 2013, nova pesquisa desta vez realizada pelo Instituto Patrícia Galvão/Data Popular, mostrou uma pequena variação nesse contexto: 98% de entrevistado (a)s declararam conhecer a lei, enquanto 9% disseram saber muito e 23% razoavelmente bem/bastante sobre o conteúdo da lei (BARSTED e PITANGUY, 2013, p. 7).

Estes novos resultados explicam, pelo menos em parte, a dificuldade que as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar encontram quando
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precisam reclamar seus direitos. Outros dados importantes foram coletados a partir do balanço semestral das atividades do Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher do governo federal que apontaram para uma grande procura de informações sobre como acionar a Lei.
Segundo o documento (SPM, 2013) no primeiro semestre de 2012 os pedidos de informações somaram 931.873 chamadas, o que corresponde a 34,6% do total de 2.714.877 atendimentos realizados pelo serviço. Ainda de acordo com os resultados apresentados, boa parte dessa demanda resulta em encaminhamentos para serviços, entre os quais, se destacam as Delegacias da Mulher. Essa crescente demanda por informações tem repercutido em aumento no número de denúncias, o que tem levado a uma permanente pressão sobre os governos estaduais e municipais para que invistam na criação de novos serviços e na capacitação de pessoal para atendimento especializado. Alguns resultados já podem ser vistos com a ampliação no número de delegacias da mulher, juizados de violência doméstica e familiar, promotorias e defensorias especializadas (SPM, 2011) (BARSTED e PITANGUY, 2013, p. 7-8).

A frequente busca por informação e a conscientização da população feminina no que diz respeito aos seus direitos garantidos em Lei, juntamente com a pressão de diversos órgãos governamentais ou não governamentais, tem redesenhado o contexto sociocultural brasileiro e possibilitado o aumento no número de serviços que atingem as mulheres em situação de violência. A existência de 66 varas e juizados especializados na aplicação da Lei Maria da Penha, conforme dados apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2013, confirmam essa premissa (BARSTED e PITANGUY, 2013, p. 8).
Os números estão muito aquém da real necessidade de um país com dimensões continentais como é o caso do Brasil. O próprio CNJ reconhece que o ideal seria a existência de pelo menos 120 varas e juizados especializados, que deveriam ser distribuídos de modo mais igualitário pelo território nacional. Todavia, não se pode negar que os números existentes indicam avanços significativos na busca pela consolidação dos direitos humanos das mulheres, em particular, no que diz respeito à exposição a violência no âmbito da família.
Outro órgão que desempenha um importante papel na luta pela igualdade de gênero e pela erradicação da violência contra a mulher é a Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) criada em 2003, pelo então Presidente Lula. Seu principal objetivo é promover
a igualdade entre homens e mulheres e combater todas as formas de preconceito e discriminação herdadas de uma sociedade patriarcal e excludente (www.spm.gov.br). A SPM, além de participar na condição de articuladora no processo que culminou com a aprovação da Lei 11340/06, ela também,
[...] cuidou para que essa lei não fosse apenas uma conquista formal, mas criou-lhe apoio através de metas previstas nos Planos Nacionais de Políticas para Mulheres (particularmente nas edições de 20082011, e 2012-2015) e no Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (2007), iniciativas que ganharam o reforço do Programa Nacional “Mulher: Viver Sem Violência”, lançado em março de 2013, que será desenvolvido em parceria com os governos dos estados e que prevê a construção da Casa da Mulher Brasileira, um centro de serviços para atendimento de mulheres vítimas de violência e fortalecimento de sua autonomia financeira (BARSTED e PITANGUY, 2013, p. 8).

A proposta de criação de varas e juizados especializados que tem sido apresentada como a solução para o problema da morosidade do poder judiciário no tratamento de processos relacionados com a violência doméstica e familiar, precisa ser acompanhada de um projeto que proponha mudanças na forma como essa organização judiciária encontra-se estruturada a fim de que cada nova unidade possa atuar de acordo com as atribuições que são previstas na lei, entre as quais, a dupla competência para julgar ações cíveis e criminais e a constituição de equipes multidisciplinares vinculadas à estrutura destes respectivos órgãos. Além disso, o Ministério Público e Defensoria Pública devem trabalhar de forma articulada a fim de que se possa viabilizar a criação de promotorias e defensorias especializadas e preparadas para assumir as atribuições que a lei prevê para cada uma dessas instituições (BARSTED; PITANGUY, 2013, p. 8-9).
Apesar de todos os avanços alcançados até o momento, existe ainda um longo e espinhoso caminho a ser trilhado. A realidade dos atendimentos prestados às mulheres vitimadas pela violência doméstica e familiar permanece muito aquém daquilo que se espera, tanto em termos de especialização requerida dos agentes responsáveis por fazer cumprir a Lei, quanto no que se refere à infraestrutura interna de funcionamento do nosso sistema jurídico que, por uma série de fatores, funciona a passos lentíssimos, o que culmina numa condição insustentável de desrespeito aos direitos humanos, nesse particular, daqueles que se referem às mulheres.
As pesquisas têm mostrado que a inexistência e/ou a inoperância de serviços essenciais para o atendimento das vítimas da violência doméstica como preconiza a Lei 11340/06, em seu Artigo 35, tem se tornado um grande obstáculo para que as mulheres possam gozar plenamente de seus direitos. Além disso, surgem outros graves problemas de ordem social que precisam ser tratados com a máxima urgência possível, dentre os quais vale a pena mencionar:
a ausência de políticas sociais nos setores de saúde, habitação, educação, geração de renda e trabalho, assistência social e previdência social entre outras, com a devida transversalização de gênero e a adequação dessas políticas para atender as mulheres em situação de violência doméstica e familiar. a dificuldade que os profissionais enfrentam para o trabalho articulado, intersetorial e multidisciplinar – o trabalho ‘em rede’ – com uma persistente mentalidade de que cada serviço deve funcionar como uma ‘micro-rede’, trazendo para dentro de seu espaço o atendimento multidisciplinar (principalmente as equipes com psicólogas e assistentes sociais), multiplicando o atendimento emergencial, que permanece com uma atuação fragmentada, descontínua, que permite poucos encaminhamentos (muitas vezes limitados por uma visão assistencialista ou de acesso a benefícios provisórios, como as cestas básicas de alimentos), mas que pouco ou nada contribuem para dar respostas efetivas para as mulheres e contribuir para seu processo de fortalecimento e acesso aos direitos (BARSTED e PITANGUY, 2013, p. 9-10).

Mesmo diante de um cenário promissor e dos avanços significativos que a luta pelos direitos humanos das mulheres tem alcançado, em particular no que concerne à conscientização social e ao combate à prática da violência contra a mulher em todos os âmbitos, e particularmente, na esfera doméstica e familiar, os números ainda crescentes de mulheres em situação de violência, como os que foram mencionados na parte introdutória deste tópico, principalmente no que diz respeito a femicídios, indicam que ainda há muito trabalho pela frente.
O problema da discriminação e da violência contra a mulher é uma enfermidade social crônica que por milênios tem atormentado as culturas ocidentais, para não mencionar as outras, e que têm raízes históricas profundas. A busca por essas raízes históricas, a tentativa de se compreender o porquê nós seres humanos do sexo masculino tratamos de modo discriminador e violento nossos pares basicamente por serem do sexo feminino, parece ser uma das muitas possibilidades de se tratar essa ‘enfermidade social’.
Só é possível oferecer um tratamento adequado, ainda que paliativo, para uma doença crônica quando somos capazes de diagnosticá-la. Somente a partir deste momento é que se torna possível propor mudanças duradouras que possam ser efetivamente implementadas. A busca pelas raízes históricas que serviram de base para a construção equivocada de nossa cosmovisão a respeito das mulheres é o tema dos dois próximos capítulos.


CONTINUA...



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