Drauzio – As
pessoas despejadas no asilo viviam em condições muito precárias…
Valentim
Gentil –
Isso foi um desvirtuamento da proposta inicial. Um filme de 1926 do
professor Pacheco e Souza realizado no Juqueri ou um filme de 1928
rodado no Hospital Psiquiátrico São Pedro do Rio Grande do Sul
mostram que a proposta inicial era humanitária. Eles pretendiam
recolher os doentes, dar-lhes proteção, abrigo e cuidados gerais de
saúde, conter as crises e oferecer-lhes a oportunidade de conviver
com outras pessoas, de trabalhar no campo ou encontrar alguma outra
forma de ocupação.
Foi
então que as ideias de Michel Foucault, filósofo francês do século
20, autor de “Doença mental e psicologia”, “O nascimento da
Clínica” e “História da loucura na Idade Clássica”,
entre outras obras, tomaram força. Ele dizia que essas iniciativas
não passavam de um grande confinamento, o que provavelmente se
aplicava à França, mas não ao resto do mundo. A releitura de
Foucault feita por vários historiadores importantes da área da
Medicina mostra que sua interpretação não corresponde à
realidade.
Drauzio – Mas
as ideias de Foucault tiveram enorme repercussão…
Valentim
Gentil –
Influenciaram toda a intelectualidade do século 20 e continuam
influenciando até hoje. Muitas das políticas que ainda vigoram
estão baseadas nos pressupostos de Foucault. Inclusive, foi no final
da Segunda Guerra Mundial, que apareceram as propostas de
fechamento dos hospitais psiquiátricos (principalmente pela
descoberta dos medicamentos que permitem tratamento
ambulatorial/comunitário dos pacientes com quadros
delirantes/alucinatórios/agitados e depressões graves).
Drauzio – Como
foi descoberto que o eletrochoque poderia
ter valor terapêutico?
Valentim
Gentil –
A partir da observação de que era comum os portadores de quadros
graves de psicose melhorarem quando tinham uma convulsão epilética,
os italianos Ugo Cerletti e Lucio Bini, fazendo estudos em animais,
descobriram que era possível provocar convulsão com corrente
elétrica de baixa amperagem, que não lesionasse o cérebro.
Considerando a hipótese da incompatibilidade entre psicose e
epilepsia, eles testaram o eletrochoque em alguns pacientes para
induzir uma convulsão e “milagrosamente” conseguiram que algumas
pessoas melhorassem das crises.
Drauzio – Eletrochoque
foi realmente o primeiro tratamento com eficácia comprovada para o
tratamento de doenças psiquiátricas?
Valentim
Gentil –
Foi o primeiro de eficácia muito clara. A história da Medicina
registra várias outras tentativas de tratamento, como virar a pessoa
de cabeça para baixo para aumentar a circulação cerebral,
medicamentos, plantas, insulinoterapia, técnicas psicológicas, mas
o que funcionava mesmo era o eletrochoque que, em poucos dias, podia
fazer o doente voltar ao normal.
Veja
também: Por
que estamos tão ansiosos?
ALTERNATIVAS
DE TRATAMENTO
Drauzio – Quando
surgiram outras propostas de tratamento?
Valentim
Gentil –
Na década de 1930, pode-se dizer que havia basicamente duas
alternativas de tratamento: o eletrochoque e as correntes
comunitárias derivadas da psicanálise e da psicodinâmica.
A
Psiquiatria Social Comunitária procurou entender a questão sob o
ponto de vista dos conflitos, tentando resolver as situações
familiares. Surgiram as teorias de que a doença mental era
sociogênica. Algumas delas culpavam as mães. Chamavam-nas de mães
esquizofrenogênicas. Imagine o absurdo que era a mãe, além de ter
um filho esquizofrênico,
ser apontada como causadora da doença, uma vez que a assim chamada
teoria do duplo vínculo ( double
bind)
assegurava que o problema ocorria quando a pessoa era exposta a
mensagens contraditórias e simultâneas de aceitação e rejeição,
comuns na relação entre pais e filhos.
Drauzio – Segundo
essa teoria, as pessoas com problemas psiquiátricos seriam meras
vítimas da sociedade e da família?
Valentim
Gentil –
Da sociedade, da família e especialmente da mãe e do pai, o que foi
uma distorção dos conhecimentos acumulados pela psicanálise, que
tem fundamentos bastante sólidos em várias áreas. A importância
das contribuições de Freud é inquestionável, mas o problema é
que de repente as pessoas se entusiasmaram demais e extrapolaram nas
explicações.
Drauzio – O
que foi o movimento de reforma psiquiátrica?
Valentim
Gentil –
Depois da Segunda Guerra Mundial, surgiu o movimento de reforma
psiquiátrica chamado Psiquiatria Democrática. Na Itália, seu
defensor foi Franco Basaglia, um psiquiatra que pôs em prática uma
proposta de atendimento no Hospital Psiquiátrico de Gorizia, que
consistia em diminuir o número de internações nos manicômios e
fazer a sociedade aceitar o convívio com os doentes mentais.
Transferido para dirigir o hospital de Triestre, Basaglia repetiu a
experiência que tinha dado certo em Gorizia e o movimento de
desospitalização foi considerado na Itália, Inglaterra, Estados
Unidos, França e vários outros países do mundo como modelo para o
tratamento da doença mental.
SITUAÇÃO
NO BRASIL
Drauzio – No
Brasil, os portadores de patologias psiquiátricas eram internados
nos hospitais. Depois, a orientação foi que ninguém mais deveria
ser afastado do convívio familiar e social. Como você vê essas
posições tão antagônicas no nosso país?
Valentim
Gentil –
Em primeiro lugar, como decorrentes de um mal-entendido. Não foi o
fechamento dos leitos dos hospitais que diminui a necessidade de
internação. Foi o surgimento de terapêuticas modernas a partir de
1950. Se nos detivermos na história da psicofarmacologia,
medicamentos como o lítio e os barbitúricos, por exemplo, surgiram
pouco antes da segunda metade do século 20. Os barbitúricos foram
usados para tratamento da epilepsia em 1930, 1940 e, no pós-guerra,
apareceram os estimulantes que, infelizmente, não funcionavam bem
para depressão.
Em
1952, com o lançamento dos antipsicóticos (a clorpromazina foi o
primeiro deles) que ajudam a reduzir as crises de agitação
psicomotora em poucos dias, começaram a desativar os leitos nos
hospitais. Na Itália, fecharam 50 mil; nos Estados Unidos, 100 mil.
Esperava-se
que essa tendência de reinserção social continuasse, mas os
governos do mundo inteiro passaram a usar os recursos economizados
com o fechamento dos leitos para outros fins que não a saúde
mental. Não se investiu na prevenção primária, nem se demonstrou
que retirar as pessoas dos leitos hospitalares era um modo eficaz de
humanizar o atendimento. Outro erro foi imaginar que a sociedade
acolheria os doentes e que as famílias teriam condições de
recebê-los em casa e de seguir as orientações dos profissionais de
saúde.
Além
disso, os medicamentos não chegaram como deveriam – até hoje, no
Brasil, a distribuição de lítio para prevenir recaídas não é
regular – e, se não voltamos para a estaca zero, estamos muito
próximos da desassistência maciça aos pacientes.
Em
todos os países do mundo, é grande o número de doentes graves nas
prisões, de doentes sem assistência alguma em suas casas ou
perambulando nas ruas. Uma tese defendida em Juiz de Fora (MG), por
exemplo, mostra que das 83 pessoas avaliadas que moravam na rua há
mais de um ano, 82 eram portadoras de algum distúrbio psiquiátrico.
Drauzio – Todos,
praticamente…
Valentim
Gentil –
Se aplicarmos a mesma proporção encontrada no trabalho de Juiz de
Fora à cidade de São Paulo que tem quase onze mil pessoas morando
nas ruas há mais de um ano, parte dormindo em abrigos, parte
dormindo na rua mesmo, chegaremos à conclusão de que, nessa cidade,
existem mais de mil esquizofrênicos sem nenhum tipo de assistência.
Imagine
como se sentiria um ortopedista que tivesse mil pacientes com
fraturas expostas nas ruas de São Paulo. Eu me sinto assim. Não
temos como atender essas pessoas, porque não existe mobilização da
sociedade nesse sentido, o Estado e o Município não têm condições
de proporcionar-lhes acolhida, e o Sistema Único de Saúde (SUS) não
leva o problema em conta.
Fechamos
82% dos leitos psiquiátricos, os seja, mais de 60 mil leitos, e o
que construímos como alternativa foi muito pouco. O pior é que a
grave situação que enfrentamos atualmente ocorre num momento em que
dispomos de tratamentos eficazes para controlar crises agudas em
poucos dias.
Drauzio – Como
evolui o esquizofrênico sem tratamento?
Valentim
Gentil –
Ele deteriora e passa a necessitar de cuidados permanentes. Fica
confuso e acaba nas ruas, jogando pedras nos carros e falando
sozinho. Outro dia, na Avenida 9 de Julho, que corta o bairro dos
Jardins de São Paulo, passei por um ser humano que comia terra no
canteiro central. Obviamente estava confuso, desorientado. Se eu
levar esse indivíduo para um instituto de psiquiatria moderno como
temos no Hospital das Clínicas, fizer o diagnóstico, prescrever o
tratamento e o encaminhar para seguimento hospitalar, estarei pondo
em prática a higienização no sentido depreciativo do século 19?
Não, estarei cumprindo meu dever de cuidar da saúde da população.
Veja
também: Transtorno
bipolar
PROPOSTAS
DE SOLUÇÃO
Drauzio – Você
vê alguma possibilidade de mudar essa situação?
Valentim
Gentil –
Está na hora de o Ministério da Saúde mudar a política em
vigência desde 1985, uma política equivocada, importada da Itália,
onde também acabou não dando certo, já que a lei aprovada em 1958
que mandava fechar os hospitais psiquiátricos não foi obedecida. O
hospital psiquiátrico é um equipamento médico e há situações em
que a pessoa precisa de cuidados que só pode receber durante a
internação. Podemos fechar os manicômios. Esses são
desnecessários, mas não podemos fechar os hospitais.
Drauzio – No
Brasil, grande parte dos leitos psiquiátricos foi desativada…
Valentim
Gentil –
No Brasil, existiam 120 mil leitos psiquiátricos. Atualmente,
existem 43 mil, apesar de o número de habitantes ter pulado de 80
milhões para 180 milhões nas últimas décadas. Em troca dessa
redução de leitos, o que se construiu de alternativas? Foram
instituídos dois mil leitos psiquiátricos em hospitais gerais há
quinze anos, e mais nada.
Acontece
que manter um leito custa muito caro e o que vai ser utilizado pela
Psiquiatria é o mesmo que se destina ao paciente de transplante de
fígado. Por isso, o hospital não quer receber pessoas com
depressão, pois essa doença pode ser tratada em clínicas
especializadas. Obrigá-los a agir de outra forma é fazer com que um
sistema que já não vai bem economicamente acabe falindo.
Drauzio – Como
reverter essa realidade?
Valentim
Gentil – Nossas
políticas têm de ser revistas. É possível estabelecer um sistema
primário de prevenção. Assim como dizemos que fumar maconha faz
mal, podemos orientar as mulheres grávidas para evitarem contato com
pessoas gripadas porque a gripe, no primeiro trimestre da gravidez,
pode aumentar o risco de doença mental grave na criança.
Da
mesma forma, podemos alertar os indivíduos com predisposição para
problemas psiquiátricos, especialmente aqueles que tiverem casos de
doença mental na família, para que passem longe das drogas e tomem
menos café e menos Coca-Cola. Eles devem evitar, também, os
remédios para emagrecer e os estimulantes, que podem desencadear
ataques de pânico.
Além
disso, diagnóstico precoce e introdução rápida do tratamento
ajudam a reverter o quadro de doença mental antes que se agrave. Um
exemplo é a depressão
pós-parto ou
a depressão puerperal. Mulher que continua deprimida três dias
depois do parto, se não receber atendimento eficaz, corre o risco de
desenvolver um quadro grave de psicose. Outro exemplo é a agudização
dos quadros maníacos. Se forem tratados nas primeiras 48, 72 horas,
a crise poderá ser controlada em duas ou três semanas sem
necessidade de internação hospitalar.
Como
se vê, estabelecer um sistema básico de prevenção é o jeito de
reduzir o número de leitos hospitalares. No entanto, eles são
absolutamente necessários, se a situação agravar-se porque o
atendimento adequado não foi introduzido precocemente. Nesse caso, a
pessoa pode ficar muito perturbada, confusa, correndo riscos ou pondo
em risco quem está por perto.
Vamos
voltar às pessoas que estão nas ruas. Podemos recolhê-las para
tratamento, mas, depois da alta, como lhes prestar assistência? O
velhinho sem família nem recursos pode morar num asilo. Mas, se for
portador de doença mental, os asilos estão impedidos por lei de
recebê-los.
Drauzio – Os
asilos hospitalares foram fechados?
Valentim
Gentil –
As pessoas fizeram esse desserviço com boas intenções. Não havia
mais o conceito de hospital psiquiátrico e asilo virou sinônimo de
manicômio. No final, proibiram a criação de uma entidade de apoio
e proteção como as idealizadas por nossos antepassados. Não
adianta oferecer residência hospitalar terapêutica, se o morador de
rua ou a pessoa que dorme embaixo da ponte não tiver um lugar seguro
para viver. Um lugar em que não seja obrigada a conviver com
bandidos e malandros e não seja morta por grupos de extermínio,
como mostram as notícias veiculadas na imprensa.
É
preciso que essa gente se sinta amparada, alimentada, não passe
frio, tenha atendimento básico de saúde e as doenças de pele
tratadas. Esses cuidados podem ser oferecidos fora dos hospitais, mas
requerem a criação de instituições pelas quais a sociedade possa
pagar. Não adianta construir um condomínio supervisionado para
colocar os moradores de rua. Se nem o Cingapura deu muito certo, como
propor a mesma solução para os doentes mentais?
Drauzio – Como
entregar para uma família com dificuldades econômicas extremas, em
que todos precisam trabalhar, a responsabilidade de cuidar do
portador de doença mental que pode criar problemas a cada minuto?
Isso não seria uma maneira de o Estado lavar as mãos e livrar-se do
problema?
Valentim
Gentil –
É uma pena que os conceitos da Psiquiatria Social e Comunitária,
que eram bem intencionados e dirigidos para a reinserção social e
reabilitação dos portadores de doença mental, tenham servido para
resolver problemas de incapacidade gerencial, administrativa e
financeira.
Recentemente,
os jornais noticiaram o caso de uma senhora mãe de cinco filhos. A
filha que era arrimo de família morreu e ela precisou sair para
trabalhar. Em casa, deixava um filho um pouco retardado, mas que não
era agressivo, e duas filhas psicóticas que, de vez em quando,
agudizavam e criavam o maior transtorno. Isso obrigava a mãe a
trancá-las dentro de casa. Os vizinhos do bairro pobre se
incomodavam com a situação, reclamavam e chamavam a polícia. O
pior é que essa senhora foi indiciada por cárcere privado das
filhas, embora só agora essas moças doentes há 30 anos recebam a
visita de uma equipe do sistema de saúde.
Mesmo
se considerarmos famílias constituídas, estruturadas, com boas
condições financeiras, acesso aos melhores serviços de saúde,
essas também têm problemas porque não existem hospitais
psiquiátricos modernos no Brasil.
INSTITUTO
DE PSIQUIATRIA DO HC
Drauzio – O
que representa o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas
de São Paulo nesse contexto?
Valentim
Gentil – O
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas é a primeira
instituição psiquiátrica moderna que se constrói na cidade de São
Paulo depois de 50 anos. De repente, o mundo tomou consciência de
que precisávamos de equipamento de saúde adequado para atender os
portadores de doença mental, porque o caminho de suspender a
hospitalização sem recursos para dar continuidade ao tratamento
estava levando à falta de assistência os portadores de doenças
mentais, mesmo aqueles que gozavam de boas condições sociais e
econômicas e de estrutura familiar organizada.
Esse
não é um problema só do Brasil. É universal, e precisamos
encontrar soluções para resolvê-lo. Não dá para entrar em
conflito ideológico e utilizar o paciente como massa de manobra. Não
dá para aceitar a passeata do orgulho louco, como a que foi
realizada recentemente. Que história é essa de ter orgulho de estar
doente? Que loucura é essa? Alguém perguntou se essas pessoas
querem continuar loucas ou receber atendimento especializado? Essa
questão é de difícil resposta porque, conceitualmente, representa
o oposto de tudo o que aprendemos nos últimos 50 anos. Estamos
cientes de que vai ser duro reverter esse processo.
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