Publicado originalmente em Revista
Prove. São Paulo: Projeto de Valorização do Educador e
Melhoria da Qualidade do Ensino, n. 1, nov. 2002. (aqui modificado)
Celso dos S. Vasconcellos[1]
A organização da
escola em Ciclos de Formação é uma das mais avançadas formas de currículo, na
medida em que a própria estrutura da instituição volta-se para as necessidades
educativas dos alunos (e não ao contrário, como fazia a escola seriada),
respeitando sobretudo a questão básica dos tempos diversos para a aprendizagem
e desenvolvimento, pela superação das interrupções artificiais.
O que muda
substancialmente na avaliação por se tratar de Ciclo?
A rigor, a
concepção de avaliação formativa (diagnóstica, emancipatória, dialética,
libertadora, dialógica) permanece: o Ciclo radicaliza e coroa esta concepção
(na medida em que a livra da necessidade de ter de classificar e reprovar).
Em termos de
avaliação, o fator primordial interveniente na organização da escola em Ciclos
de Formação é justamente o fim da avaliação classificatória em termos de
legislação. Esta novidade é que constitui um avanço institucional. Mas é também
um campo de possíveis equívocos e discórdias, em decorrência de distorções
historicamente acumuladas.
Posicionamento do Professor
Precisamos
ter muita clareza: educação não se garante com tijolos, livros, leis. O fator
essencial da educação é o humano e, em especial, no caso da educação escolar, o
professor, por ser o coordenador deste processo em sala de aula. Portanto, não
podemos ter a ilusão de que uma “revolução” irá acontecer porque houve uma
alteração na legislação educacional (no caso, o fim da reprovação). O sucesso
ou fracasso de qualquer política educativa dependerá sempre do professor, do
seu grau de consciência, do seu compromisso, do seu envolvimento.
Neste
sentido, o fim da reprovação pode significar um avanço ou um retrocesso, de
acordo com a posição que o professor assume diante dele:
lAvanço: quando o professor
entende que com isto se acaba com um dos condicionantes da distorção da prática
pedagógica que é a avaliação classificatória;
lRetrocesso: se o professor se
coloca numa postura reativa, ressentida (“O nível do ensino vai cair”; “Agora
perdemos nosso poder”; “Os alunos não vão mais se interessar por saberem que
estão aprovados, etc.). Este efeito, a nosso ver, é muito mais grave que o
possível avanço apontado acima, pois significará que o professor estará fazendo
algo que não acredita, contaminando toda a prática educativa.
Por
isto, o posicionamento do professor é da maior importância. Um dos pontos de
partida para a proposição do Ciclo é justamente a constatação da
não-aprendizagem efetiva e significativa por parte da totalidade dos alunos que
freqüentam a escola, sendo que a avaliação classificatória, entre outras
coisas, contribui para isto. Propõe-se, então, o fim da classificação como uma
forma de favorecer a aprendizagem de todos. Ora, se passa a haver uma atitude
de demissão por parte dos professores, volta-se ao ponto de partida
(não-aprendizagem). Na questão dos Ciclos hoje, o que está em questão é tanto a
mudança de procedimento pedagógico quanto de atitude do professor; há
necessidade destas duas dimensões caminharem juntas.
Por
outro lado, o compromisso do professor não se dá no vazio. Não podemos cair no
viés idealista, voluntarista. Objetivamente, a prática do professor, bem como
seu nível de consciência possível, dependerá, em alguma medida, de tijolos,
livros, leis, salário, grau de participação nas decisões, tempo livre para
estudo e reflexão, etc. Devemos manter a tensão dialética entre os limites
colocados pela realidade e nossa capacidade de tomada de consciência e de
posição para enfrentá-los.
Há
um desejo profundo, por parte de muitos, de uma mudança da realidade. Sabemos
também que transformar é complexo e muito exigente. No entanto, cabe
questionar: será que fazendo as mesmas coisas teremos um mundo diferente?
Provar que “um outro mundo é possível” exige práticas concretas, inclusive na
avaliação.
Superação ou Restauração?
Para
os grupos que já têm uma caminhada —como é o caso da rede municipal de ensino
do município de São Paulo— o desafio é fazer uma crítica “para frente”, no
sentido de superar eventuais limites e contradições, e não ceder à tentação de
recuar, restaurar o que há séculos se fazia na escola. Não temos dúvidas de
que, num primeiro momento, a prática tradicional de avaliação é muito mais
fácil (os pais não questionam, basta aplicar algumas provinhas e emitir um
conceito, está de acordo com o sistema seletivo social, etc.). Todavia, esta
“saudade das cebolas do Egito” tem um custo muito elevado: a contribuição para
a manutenção da ordem dominante desumana e excludente. Até mesmo do ponto de
vista pedagógico, da “sobrevivência” do professor em sala, a avaliação
classificatória, em função das profundas mudanças que ocorreram na relação
escola-sociedade (em especial a queda progressiva do mito da ascensão social
através do diploma), já não dá resultado. Uma evidência disto é a realidade de
escolas (públicas ou particulares) que mantém o sistema tradicional de
avaliação e nem por isto conseguem resolver os problemas de motivação e
disciplina de seus alunos.
O Sentido Radical da Avaliação
O que está em
questão? No fundo, o resgate do papel essencial da escola: espaço de produção
de aprendizagem e de desenvolvimento humano de todos, e não de seleção social
(ainda que de forma involuntária).
A simples
existência da avaliação classificatória acaba por desviar a atenção do
professor (e, por conseqüência, dos alunos, pais e comunidade): passa a ficar
preocupado em definir “o quanto o aluno merece” e não mais em “o que é preciso
para que o aluno aprenda mais e melhor”. Vejam que isto é uma questão
estrutural, que, inicialmente, não depende da vontade individual do professor:
quando entra na escola seriada, já existe esta lógica implantada e é cobrado em
cima disto.
A
tarefa básica é simples (pelo menos do ponto de vista de sua formulação): não interromper
o movimento inerente á avaliação no seu autêntico sentido, ou seja, não parar
na verificação! Aplicar um instrumento, corrigir e atribuir um conceito ainda
não é avaliação! Constatar a dificuldade do aluno é muito importante, mas não
para poder lhe atribuir “uma nota justa”, e sim para saber exatamente onde está
o problema e intervir a fim de resgatar a aprendizagem que ainda não se
deu a contento. Verificar, portanto, faz parte da avaliação, todavia não a
esgota; no seu sentido radical, a avaliação implica um posicionamento diante
daquilo que foi constatado. Esta interrupção na prática cotidiana é fatal para
distorcer a avaliação. Sabemos que existe uma série de fatores que contribuem
para isto (elevado número de alunos em sala, pressão para cumprir programas,
falta de domínio de estratégias diferentes de ensino, etc.); porém é
absolutamente decisivo que seja completado o ciclo da avaliação para que ela
cumpra sua função maior de produção de conhecimentos, procedimentos e atitudes,
conforme o Projeto Político-Pedagógico da instituição.
Os
procedimentos pertinentes a uma avaliação diagnóstica, nos parece, já são bem
conhecidos: adequar o nível de
exigência; ser professor dos alunos concretos que tem e não virar professor de
“determinados conteúdos preestabelecidos”; desenvolver metodologia de trabalho
interativa em sala de aula; incentivar que o aluno “diga com as suas palavras”
aquilo que está aprendendo; abordar conteúdo de forma diferente; buscar
expressão diversificada do conhecimento; fazer retomada dos assuntos (currículo
em espiral ascendente); dialogar sobre as dificuldades (postura de
investigação, pesquisa); ajudar aluno a se localizar no processo de
ensino-aprendizagem (metacognição); acompanhamento/atendimento durante
atividades em sala; atividades diversificadas de acordo com as necessidades dos
alunos; adequar o nível de dificuldade das atividades propostas em sala,
levando o aluno ao sucesso na sua realização e, conseqüentemente, fortalecendo
sua auto-estima; trabalhos de grupo em sala; trabalho de monitoria (em
sala ou fora); assembléias de classe
periódicas para análise da caminhada; espaços diferenciados (biblioteca de
classe, cantinho da leitura, cantinho dos jogos, estante do verde, caixa de experiências,
etc.); revisão da proposta de trabalho (conteúdos, metodologia, relação
professor-aluno); entendimento da avaliação como espaço de aprendizagem;
avaliação diferenciada, de acordo com as necessidades dos alunos (inclusive
alunos portadores de deficiência); desenvolver a responsabilidade coletiva pela
aprendizagem de todos em sala; favorecer o crescimento da autonomia do aluno;
conselhos de classe participativos; organização das turmas sem critérios
discriminatórios; professor-orientador para aluno com dificuldade maior na
aprendizagem ou no relacionamento; propiciar a formação permanente dos
educadores; avaliar o avaliador (a instituição, a equipe, o professor);
trabalho com representantes de classe; o mesmo professor acompanhar a
turma no ano seguinte (além de conhecer melhor os alunos, evita comentários dos
colegas do ano seguinte de que “os mandou sem base”); trabalho coletivo:
discutir com colegas dificuldades que está encontrando com alunos em sala de
aula; partilha de experiências, estudo; planejamento conjunto, “negociação” de
conteúdos; uso de portfólio
(pasta com todas as produções do aluno) como forma de melhor acompanhamento da
aprendizagem; uso de parecer descritivo
(ao invés de nota ou conceito) para poder se conhecer melhor o desenvolvimento
dos alunos; propiciar horário comum de estudo em sala (ex.: na primeira aula do
dia os alunos pesquisam os assuntos das próximas aulas); laboratório de
aprendizagem para trabalhar as necessidades específicas de aprendizagem;
abertura a estagiários de cursos de formação de professores para ajudar no
trabalho com alunos com dificuldade; fortalecimento da autonomia do professor.
Todavia, como não há prática que se garanta por si (uma vez que se pode
ter uma prática nova com postura velha), cabe trazer alguns indicadores de
mudança, qual seja, alguns sinais que costumam se manifestar quanto de fato
está havendo uma mudança da prática educativa: maior proximidade
professor-aluno, diminuição das queixas em relação aos alunos (os problemas
passam a ser tratados como desafios e não como álibi para não ensinar), mudança
nas estratégias de sala de aula, replanejamento, aumento do registro por parte
do professor (episódios de sala de aula, dúvidas, pontos a serem observados,
descobertas, etc.), maior expressão dos alunos, mais liberdade em sala, menos
medo de errar, ausência de tensão nos momentos mais específicos de avaliação,
menor competição entre alunos, clima de maior verdade entre professor e alunos
(diminuição dos comportamentos estereotipados ou dissimulados), reflexão sobre
a prática por parte do professor, autolocalização do aluno no processo de
aprendizagem, aumento da pesquisa por parte do professor (e dos alunos), maior
cooperação entre colegas, maior tolerância com as diferenças, relação de maior
proximidade com a comunidade, clima de projeto na escola.
Concluindo
O que se espera, portanto, é que os educadores sejam sujeitos de
transformação, abrindo novas possibilidades na forma de ser da escola. No
fundo, o que está em questão é uma mudança de atitude, que, apesar dos riscos
de sermos mal interpretados, pode ser expressa numa palavra: amor! Como dizia
Renato Russo, na Música Monte Castelo: “Ainda que eu falasse a língua
dos homens/E falasse a língua dos anjos,/Sem amor eu nada seria. É só o amor, é
só o amor”.
Parafraseando, eu diria:
Ainda que
utilizasse muitos instrumentos de avaliação, ainda que preparasse instrumentos
reflexivos e operatórios, ainda que acabasse com a semana de prova, ainda que
não usasse mais nota e nem tivesse mais reprovação, se não
mudasse a postura, se não acreditasse que um outro mundo —onde todos tenham
lugar— é possível, se não tivesse profundamente convencido de que todo ser
humano é capaz de aprender, se não me comprometesse com a efetiva aprendizagem
(e desenvolvimento) de todos, eu nada seria como educador!
Referências
Bibliográficas
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PMSP/SME. Regimento em Ação –
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PMSP/SME. Regimento em Ação –
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ROMÃO, José Eustáquio. Avaliação
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__________Avaliação da Aprendizagem: Práticas de Mudança - por uma práxis
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__________ Avaliação: Concepção Dialética-Libertadora do Processo de Avaliação
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__________Ciclos
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__________
Ciclos de Formação: um horizonte libertador para a escola no 3o
milênio. In Revista de Educação da AEC
(111). Brasília: AEC, 1999.
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